sábado, 12 de dezembro de 2009

Gênesis



No princípio... Pequenos animais insetívoros correndo por toda parte num ambiente pululante de vida. A partir desse cepo insetívoro desenvolveram-se dois novos tipos de mamíferos: os carnívoros e os herbívoros. E a partir desses ramos desenvolveram-se espécies muito especializadas em seus ambientes específicos, exímios caçadores e excelentes pastores. Porém, nas florestas do mundo ainda sobreviviam os insetívoros. Eles, por sua vez, desenvolveram-se e alargaram sua dieta deixaram de ser exclusivamente insetívoros, mas sim coletores aproveitadores das oportunidades que a natureza lhes ofereceria. Desses pequenos animais desenvolveu-se o ramo dos primatas. Nas florestas luxuriantes que se estendiam da África Central ao Sudoeste Asiático existia um ambiente perfeito para o desenvolvimento desses animais extremamente adaptáveis, surgindo assim os grandes símios.
Nesse paraíso, os símios tiveram seu apogeu. Porém, como acontece com todo paraíso, eles foram expulsos. Metaforicamente, é claro, pois os grandes símios ainda vivem nas florestas da África Central e do Sudoeste Asiático. Há cerca de quinze milhões de anos uma mudança climática afetou essa extensa área de floresta reduzindo o ambiente dos símios, Forçando-os a uma série de “decisões” [1]. A primeira delas, e talvez a mais importante, foi feita entre permanecer na floresta ou empreender uma mudança arriscada para a savana para competir com os caçadores ou os pastores. O símio do qual descendemos escolheu o risco. Trataremos dele agora. Os símios que escolheram a floresta não cessaram de ter sua população diminuída desde então.
Convém, antes de iniciarmos nossa aventura, enfatizar alguns esclarecimentos. “Só poderemos adquirir uma compreensão objetiva e equilibrada da nossa extraordinária existência se lançarmos um olhar duro sobre as nossas origens e estudarmos os aspectos biológicos do atual comportamento da nossa espécie” [2]. Até esse ponto partilhamos nossos caminhos evolutivos com os outros grandes primatas. Porém, a partir de agora o caminho é só nosso e isso é um fator primordial para compreender o comportamento do primata caçador. Tomaria muito tempo enunciar as provas reunidas na historia da ciência a respeito da evolução do homem, então nos vamos nos limitar às conclusões resultantes dos trabalhos dos “paleontólogos esfomeados-de-fósseis e dos fatos colecionados pelos pacientes etólogos espreitadores-de-macacos” [3].
A primeira grande dúvida do primata caçador diz respeito à alimentação. Na savana só haviam duas opções viáveis até então, tornar-se um caçador e competir com os grandes felinos e caninos ou tornar-se pastor e competir com os outros pastores e ainda fugir dos felinos. Na floresta original o primata caçador não tinha sua alimentação exclusiva a base de vegetais e insetos, ela incluía também pequenos animais indefesos e ovos, por outro lado sua adaptação a uma alimentação exclusivamente vegetariana seria extremamente complexa, competir com os pastores será impossível. Decisão tomada, resta saber que tipos de caçador seriam. Competir diretamente com os grandes caçadores exigiria uma adaptação extensa de garras, dentes, pernas: um tipo de macaco-gato ou macaco-cão. Existem poucos indícios da existência dessa tentativa mal sucedida. Restou então a opção de ser um tipo diferente de caçador, tivemos que nos tornar assassinos calculistas.
Às vezes quando se conta uma história fica uma certa impressão que os acontecimentos ocorreram um após o outro, mas quando falamos de evolução temos que ter em mente que os processos acontecem em paralelo e pequenas modificações estimulam outras no processo contínuo de desenvolvimento.
Desenvolvemo-nos essencialmente como primatas de rapina. Por isso somos únicos entre os símios, “uma grande transformação desse gênero produz um animal com dupla personalidade” [4]. Ainda não abandonamos os velhos hábitos enquanto avançamos com grande vigor na aquisição das novas características. Todos os seus hábitos sociais, familiares e sexuais começaram a mudar. Todo seu corpo foi projetado para viver entre árvores e de repente (em termos evolutivos) foi jogado num ambiente onde só poderia sobreviver transformando-se num assassino calculista colecionador de armas. Nosso objetivo é analisar como isso ocorreu e como afetou o comportamento do homem macaco desde então.
Para esse fim acreditamos que a melhor maneira seria analisarmos e compararmos inicialmente as características do que poderíamos chamar de carnívoros puros e dos coletores puros e verificar quais características são encontradas no homem, de que forma e com que peso.

Carnívoro puro
Coletor puro
Primata caçador
Separação motivacional entre caça e comida
Não separação entre busca e comida
Separação motivacional entre caça e comida
Armazenamento de comida
Não armazenamento
Armazenamento de comida
Períodos de jejum e super-alimentação alternados
Alimentação continua
Períodos de jejum e super-alimentação alternados
Partilha de comida
Não partilha de comida
Partilha de comida
Cuidado com as fezes
Nenhum cuidado com fezes
Cuidado com as fezes
Inibição de ataque dentro da própria espécie
Comunidade coesa
Inibição de ataque dentro da própria espécie, Comunidade coesa
Territorialista
Nômade
Territorialista
Cooperatividade
Não cooperação
Cooperatividade
Pulgas
Sem pulgas
Pulgas


Carnívoro puro:
Sentidos: voltado excepcionalmente para o olfato, audição apurada, olhos especializados em movimento, sem cores. Aparato físico: extraordinários corredores velocistas ou fundistas. Armas naturais: dentes e garras.
Ø O ato de matar tem seu próprio reforçador[5], separado do reforço alimentar, tornando o a busca pela presa um fim em si mesmo e precisa ser satisfeito com atividade de caça. Exemplo: gatos domésticos que mesmo bem alimentados saem a noite em busca de presas que em geral são desprezadas como alimento.
Ø Costumam armazenar comida, enterrando ou colocando em cima de árvores ou levando para o refúgio. Exemplo: leopardo, que coloca animais abatidos em galhos de árvores para posterior alimentação.
Ø Podem suportar grandes períodos de jejum seguido de super alimentação. Exemplo: depois de um período de jejum um lobo pode comer até um quinto de seu peso.
Ø A partilha da comida é comum em diversas espécies, principalmente nas que formam grandes bandos. Exemplo: os cães selvagens africanos regurgitam comida para os indivíduos que não participaram da caçada.
Ø Como suas fezes são extremamente malcheirosas requerem um cuidado especial, são cuidadosamente enterradas ou os indivíduos se deslocam grandes distâncias para defecar. Exemplo: as mães comem as fezes das crias para manter o refúgio limpo.
Ø Existe uma competição na hierarquia social. Tem uma fortíssima inibição de utilizar seu equipamento de caça contra indivíduos da mesma espécie. Exemplo: uma luta mortal entre dois indivíduos muito bem armados poderia resultar na morte ou inutilização de ambos indivíduos, o que não seria vantagem para ninguém.
Ø Em geral fazem uso de um grande território permanente de caça, que defendem e patrulham. Exemplo: existe uma considerável agressividade contra indivíduos isolados, que são apanhados fora do próprio território, que pode ser até fatal.
Ø O método de caça varia de espécie para espécie mas em geral existem manobras complexas, coordenação e uma cooperatividade, ou seja, um envolvimento dos indivíduos do grupo na realização da caçada, onde a participação de cada um é pondo fundamental na realização da tarefa. Exemplo: os leões realizam uma emboscada onde alguns indivíduos assustam a presa e a guiam para o local onde o restante do bando aguarda.
Ø Pulgas depositam seus ovos não no corpo de um hospedeiro, mas em meio a detritos e nas paredes de seus abrigos. Assim, quando eles completam o ciclo de crescimento, voltam a infestar o hospedeiro.
Coletor puro:
Sentidos: voltado mais para a visão, com cores, audição sem especialização, olfato: pouco desenvolvido, paladar desenvolvido. Aparato físico: mais acrobático do que atlético. Armas naturais: desprovido.
Ø A busca pela comida e o ato de comer tem os mesmos reforçadores já que a comida se encontra com facilidade e não oferece nenhuma resistência.
Ø Não há necessidade de armazenar a comida, já que ela se encontra a disposição sendo apenas uma questão de a localizar.
Ø A alimentação se faz ao longo do dia num contínuo mastigar.
Ø Todo o grupo se encontra na área de alimentação e cada individuo se alimenta sem a necessidade de intermediários, com exceção dos filhotes.
Ø Os coletores puros não demonstram nenhum cuidado com as fezes devido a estilo de vida nômade não há interesse em manter o local de repouso limpo já que em seguida ele será abandonado e a região não corre o risco de se tornar excessivamente suja.
Ø Os membros do grupo permanecem o tempo todos juntos, eles se alimentam, fogem e se locomovem juntos formando uma comunidade coesa onde cada individuo sabe o que o outro esta fazendo.
Ø Estão constantemente em movimento, o que varia de alguns metros a grandes distâncias, mas sem se ater a um território especifico. O encontro com outros grupos costuma ser agressivo, não relativamente ao território, mas à utilização de uma fonte de comida no momento.
Ø Apesar da estrutura social coesa, hierarquizada e competitiva não existe cooperatividade entre os indivíduos do grupo já que a atividade de alimentação não exige nenhuma complexidade ou coordenação. Existe sobretudo competição e dominação no nível social, já que a alimentação é uma atividade das mãos e da boca.
Ø Os primatas são infestados com todo tipo de piolhos e parasitas mas nunca tem pulgas devido ao seu ciclo de vida nômade quebrar o ciclo de transmissão das pulgas. Se eventualmente uma pulga se aloca em um primata ao seguir seu ciclo de vida colocando os ovos nos solo uma vez esse ovos eclodindo não encontrarão o primata para o reinfestar.
Primata caçador:
Ao fazer a comparação entre caçadores puros e coletores puros foram usadas características típicas desses dois grupos. É de se esperar que de ambos os lados hajam exceções e a maior das exceções dos dois grupos é o próprio primata caçador: um hibrido de caçador e coletor. Veremos então como estas duas características se combinaram para formar este animal.
Sentidos: voltado mais para a visão com cores (impróprio para viver no chão), audição sem especialização (insuficiente para caçar), olfato: pouco desenvolvido, paladar desenvolvido. Aparato físico: mais acrobático do que atlético (impróprio para longas corridas e ou arrancadas velozes). Armas naturais: desprovido. Personalidade mais competitiva que cooperativa, pouco habituado a planejamento. Não fosse um excelente cérebro e uma inteligência geral mais desenvolvida do que a dos carnívoros rivais seria uma competição perdida. Mas ainda assim tínhamos um coletor caçando, e para que isso desse certo muitas mudanças tiveram que ser realizadas com o correr de um longo período de tempo. Talvez a principal delas seria a mudança do cérebro juntamente com um alto grau de neotenização, que devido a sua importância deverá ficar para um próximo artigo. Vamos analisar as mudanças nas demais características da transição de coletor para caçador. Essas características recentemente adquiridas, por força de sobreviver a um novo estilo de vida, têm que lutar para prevalecer sobre uma tendência a agir como um primata regular.
Ø Tiveram de ser desenvolvidos motivadores[6] para os diferentes processos necessários para a alimentação, já que a obtenção do alimento e seu preparo são processos longos até que de fato seja ingerido.
Ø Iniciou-se a o armazenamento de comida.
Ø A alimentação continua não é mais possível, ocorre uma adaptação para uma alimentação que alterna períodos de jejum.
Ø Com a planificação da caçada houve uma divisão nas tarefas referentes a obtenção de comida. Criou-se a necessidade de partilhar a comida com os membros do grupo que não participaram da caçada, como filhotes e fêmeas a quem ficou atribuída toda a responsabilidade de cuidar dos filhotes de crescimento lento. Mas em compensação o primata caçador é único primata que realmente conhece o pai.
Ø Com a habitação fixa a defecação teve de se tornar criteriosa com uma destinação adequada às fezes.
Ø Teve de dominar o instinto primata de nunca se afastar do grupo, teve de partir audaciosamente em pequenos grupos ou mesmo sozinho pra explorar o mundo.
Ø Como os carnívoros, o primata caçador teve que escolher um território fixo para maximizar suas possibilidades de caçada.
Ø Para o desenvolvimento da habilidade de caça em grupo, a comunicação e a cooperação tiveram de ser fortemente desenvolvidas, tornando as expressões vocais e faciais muito mais complicadas. Com o manejo de armas artificiais, teve de desenvolver inibição de ataque dentro do grupo. Para defender o território acentuou-se a agressividade contra grupos rivais.
Ø Ao fixar moradia o primata caçador tornou-se um hospedeiro ideal para as pulgas. Tão ideal que tem uma espécie exclusiva que só infesta o primata caçador.
O primata caçador é um animal único. Híbrido de dois gêneros, ele se estabelece sem esquadrar-se em nenhum padrão preestabelecido de comportamento: não é um coletor puro, não é um caçador puro. Qualquer tentativa de o enquadrar em um desses esquemas, como por exemplo, a primatologia comparada[7], levará a uma conclusão no mínimo parcial, visto que de fato existem similaridades, porém existe uma gama de aspectos que ficariam de fora dessa conclusão. Dessa forma, como espécie, o primata caçador está sem par no reino animal, portanto não há termo de comparação nem padrão de normalidade que possa ser estabelecido.
É uma grande história a aventura da evolução de um pequeno insetívoro nas florestas a um grande primata que dominou o mundo e alterou a dinâmica da natureza. Seu comportamento e sua morfologia foram sendo alterados à medida que o ambiente mudava à sua volta e também à medida que sua relação com esse ambiente ia sendo alterada. No atual momento dessa história, está em curso uma alteração drástica, tanto ambiental, provavelmente causada pelo primata caçador, como do comportamento desse primata caçador. Essas alterações se devem principalmente às mudanças na relação desse primata caçador com os outros membros de sua espécie. Prever qual o destino dessas mudanças está fora de qualquer possibilidade. Nos próximos artigos analisaremos mais detalhadamente algumas das mudanças que ocorreram no processo de evolução do macaco caçador e que ficaram de fora desse.
Bibliografia:
MORRIS, Desmond. O macaco nu: um estudo do animal humano. Trad: Hermano Neves. 8ª Ed. – Rio de Janeiro. Record.

[1] É difícil fugir de uma linguagem teleológica quando falamos de biologia já que essa metáfora teleológica é didaticamente mais palatável ao grande público. A teleologia não passa de conceito regulador do uso do intelecto humano: uso oportuno e necessário pelo fato de que o intelecto humano encontra limites bem precisos na explicação mecânica do mundo, sendo, pois, levado a recorrer a uma consideração complementar. Esta, contudo, nunca pode valer como explicação, e sua única função é ajudar a procurar as leis particulares da natureza (Kant, Crít. Juízo ,§ 78), assim mantemos a teleologia como metáfora, mas enfatizamos o fato de que os eventos aqui narrados só podem ser explicados como causa e efeito se analisados de trás para frente, e que não existe nenhum indicio de que a natureza traça objetivos ou que pretenda atingi-los.
[2] Morris, Desmond. pg19
[3] Morris, Desmond. pg14
[4] Morris, Desmond. pg15
[5] Reforço: Apresentação do estímulo que desencadeia a reação incondicionada, em lugar de estímulo condicionado (dicionário Houaiss)
[6] Motivação: conjunto de processos que dão ao comportamento uma intensidade, uma direção determinada e uma forma de desenvolvimento próprias da atividade individual (dicionário Houaiss)
[7] Primatologia comparada: É a ciência que estuda o comportamento humano comparado ao comportamentos dos demais primatas superiores.