terça-feira, 9 de novembro de 2010

“O QUE É VIDA?”: UM RETORNO AO ESTUDO DO SER VIVO - A natureza da Vida - parte 4

Na atualidade começam a surgir novas correntes de pensamento que se contrapõe ao pensamento mecanicista por considerá-lo inadequado para descrever diversos fenômenos naturais, devido a impossibilidade de se reduzir os fenômenos relacionados com vida a leis matemáticas simples. Uma dessas correntes de pensamento é o chamado pensamento holista ou sistêmico ou ainda organicista, que consiste numa tentativa de perceber os fenômenos como um todo inseparável, um modelo científico que se baseia no conceito de relação, que é muito mais amplo que o de análise, como o usado pela ciência clássica. Já não são somente as partes constituintes de um corpo ou de um objeto que são de fundamental importância para a compreensão da natureza desse objeto, mas o modo como se expressa todo esse objeto, e como ele se insere em seu meio. O holismo não significa a soma das partes, mas a captação da totalidade orgânica, una e diversa em suas partes, mas sempre articuladas entre si dentro da totalidade e constituindo esta totalidade. As partes que constituem um sistema têm um notável conjunto de características que se vêem no âmbito das partes, mas o sistema inteiro, o todo - o holos -, frequentemente possui uma característica que vai bem além que a mera soma das características de suas partes (propriedades emergentes). Por exemplo, sabemos que tanto o hidrogênio quanto o oxigênio são constituintes fundamentais no processo de combustão. Mas se juntamos esses elementos e formarmos a água, nós os usaremos para combater a combustão. O Todo não elimina as características das partes, mas estas, quando em relações íntimas, dão o substrato a uma nova forma, cujas características transcendem às das partes constituintes. São nas ciências relacionadas a vida (biologia, ecologia, psicologia, medicina, ...) onde melhor se pode demonstrar esta relação parte/todo em simbiose íntima.
Parte das mudanças de conceitos que devemos adotar incluem a mudança no conceito de ciência onde a ciência, antes estritamente objetiva, torna-se epistêmica (voltada para o próprio processo intelectual de conhecer), já que as teorias revelam mais sobre a mente que a concebe que propriamente da realidade. Toda teoria é um modelo de explicação aproximada da realidade. Parte-se das partes simples, consideradas independentes, para partes em interação, em processo ou em rede. Não é apenas o conjunto de elementos isolados que formam o universo de fenômenos estudado pela ciência, mas a interação, a relação que existe entre esses elementos.[i]
Segue no quadro a baixo as principais características do paradigma sistêmico ao lado das características do paradigma cartesiano. Devemos ainda reforçar o fato de que, até hoje, nenhuma concepção de ciência pode, sozinha, oferecer uma explicação exaustiva do mundo em que vivemos, cabe a nós, ao unir esses dois paradigmas, um novo esforço nessa tarefa.


Quadro 02. Preceitos Cartesianos e Preceitos Sistêmicos

 
Preceitos Cartesianos
Preceitos Sistêmicos
Evidência: a verdade é única e só existe se puder sei provada.
Pertinência: a percepção do objeto está diretamente relacionada á intenção do sujeito.
Reducionismo: divisão dos problemas nas menores, partes possíveis para proceder a sua resolução.
Globalismo: é consciente de que o objeto investigado faz parte de um todo maior, por isso a importância de compreender o funcionamento da parte em relação ao ambiente.
Causalista: institui-se uma hierarquia estrutural para resolução dos problemas. iniciando-se pelas partes mais simples e fáceis e ascendendo para as mais difíceis e complexas.
Teleológico: busca compreender o comportamento do objeto, sem o objetivo de explicá-lo em relação à estrutura física do objeto.
Exaustividade: retoma os três primeiros preceitos e faz uma última análise do objeto. considerando que nada mais existe para ser explorado.
Agregatividade: considera que toda representação é influenciada pela visão de mundo do observador. Por isso, muitos aspectos podem ser omitidos.




Compreender a natureza da vida a partir de um ponto de vista sistêmico ou holista significa identificar um conjunto de critérios gerais por cujo intermédio podemos fazer uma clara distinção entre sistemas vivos e não-vivos. Ao longo de toda a história da biologia, muitos critérios foram sugeridos, mas todos eles acabavam se revelando falhos e incompletos de uma maneira ou de outra. No entanto, as recentes formulações de modelos de auto-organização e a matemática da complexidade indicam que hoje é possível identificar tais critérios. Na atualidade podemos identificar três correntes de saber que se tornam, dia a dia, fundamentais para compreender os fenômenos da vida, apesar de guardar entre si uma diferença marcante, juntas elas podem nos revelar uma visão mais ampla dos fenômenos da vida. São esses três critérios: 1) autopoiese, uma nova concepção do padrão da vida, introduzido por Maturana e Varela, 2) estrutura dissipativa; uma nova concepção de estrutura da vida, introduzido por Prigogine; e 3) cognição, e uma nova concepção do processo da vida, introduzido no estudo da vida, por Baterson e mais tarde por Maturana e Varela.


[i] Brandão e Crema, 1992: 90
 
BRANDÃO, Dênis e CREMA. Roberto. O Novo Paradigma Holístico. São Paulo: Summus Editorial, 1992.
imagem: http://leonidafremov.deviantart.com/art/DEEP-IN-THE-WOODS-AFREMOV-184958375?q=&qo=

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

“O QUE É VIDA?”: UM RETORNO AO ESTUDO DO SER VIVO - A natureza da Vida - parte 3

O estudo dos seres vivos tem sido negligenciado em detrimento do estudo das forças físicas devido ao triunfo do pensamento newtoniano/cartesiano que conseguiu, com seu método rígido e quantitativo, uma descrição bastante precisa dos fenômenos do universo macroscópico; porém, essa descrição não foi satisfatória, porque, ao escopo da teoria mecanicista escapa o que, segundo Prigogine:
[...] foi, sem dúvida, uma das mais antigas fontes de inspiração da física, o espetáculo do desenvolvimento progressivo, da diferenciação e da organização aparentemente espontâneas do embrião. Forma-se a carne, o bico, os olhos, os intestinos; sim, há de fato organização progressiva de um espaço propriamente biológico, aparecimento a partir de um meio homogéneo, de uma massa que parece insensível, de formas diferenciadas, precisamente no momento e no lugar oportunos, num processo coordenado e harmonioso. [i]
Os estudiosos das substâncias medem e pesam os organismos sem se atentar para o fato de que, ao reduzirem os organismos a moléculas e átomos, ou seja “quantidades”, estão ignorando as relações entre as diversas partes do organismo e as relações entre os organismos, estão deixando de fora dos seus microscópios e espectrógrafos as “qualidades” desses organismos, que são exatamente o que diferem um amontoado de moléculas e átomos inanimados de um organismo vivo.
A partir de agora, para que possamos entender a essência dos sistemas vivos, seja a partir da biofísica, da bioquímica ou outra ciência interessada no estudo dos fenômenos relacionados a vida, teremos que abandonar a crença reducionista de que quando descrevemos organismos complexos como se fossem máquinas, ou seja, em função das propriedades e do comportamento de seus elementos constituintes, estamos dando uma explicação exaustiva desses organismos.
Essa abordagem, biológico, genético e molecular, teve sua importância ao nos oferecer uma lista completa dos elementos físicos envolvidos nos sistemas vivos. Agora que a listagem está completa devemos voltar nossos esforços para os problemas deixados para traz sem solução, como por exemplo, os da diferenciação e desenvolvimento celular, ou os da regeneração. Sidney Brenner nos indica sutilmente o caminho através da concepção sistêmica da vida:
Penso que nos próximos 25 anos vamos ter de ensinar aos biólogos uma outra linguagem. (...) ainda não sei como ela se chama; ninguém sabe. Mas o que se almeja, penso eu, é resolver o problema fundamental da teoria de sistemas elaborados. (...) e ai nos deparamos com um grave problema de níveis: talvez seja um erro acreditar que toda a lógica está no nível molecular. Talvez seja preciso ir além dos mecanismos de relógio.[ii]
Cada uma das fases do pensamento científico foi bem sucedida em determinados períodos de tempo. Dando novas perspectivas para a compreensão da realidade física, condicionavam a atitude científica e estabeleciam quais seriam os critérios de pesquisa, freqüentemente ligados à maneira como se esperava que o mundo devesse funcionar de acordo com o modelo (paradigma) adotado. Deste modo, fica claro que a ciência não é um processo de descoberta, em sentido estrito, de uma realidade dada, porém parece ser mais um processo de construção intelectualmente coerente para explicar certos fenômenos. Ou, em outras palavras, a ciência se constrói em cima de alguns fundamentos filosóficos bem definidos, mesmo que não sejam muito conscientes (freqüentemente não são mesmo). Parafraseando Lewis Carroll, faremos agora uma viagem “através do relógio”, de volta aos problemas que estão por trás da cortina conceitual do mecanicismo. Não abandonaremos os conhecimentos alcançados, mas os utilizaremos como base para a elaboração de uma nova conceitualização.
Porém, essa conceitualização não é tão nova assim, como já dissemos o estudo dos padrões e processos ficou relegado ao segundo plano a partir da introdução do modelo de Galileu de ciência; no entanto, com Aristóteles a forma não tinha existência separada, mas era imanente à matéria. Nem poderia a matéria existir separadamente da forma. A matéria, de acordo com Aristóteles, contém a natureza essencial de todas as coisas, mas apenas como potencialidade. Por meio da forma, essa essência torna-se real, ou efetiva. O processo de auto-realização da essência nos fenômenos efetivos é chamado por Aristóteles de enteléquia ("autocompletude"). É um processo de desenvolvimento, um impulso em direção à auto-realização plena. Matéria e forma são os dois lados desse processo, apenas separáveis por meio da abstração[iii]. O pensamento Aristotélico domina a cena teoria na antiguidade e na idade medieval até o advento dos fundadores do mecanicismo Copérnico, Galileu, Descartes, Bacon e Newton. Porém, nesse mesmo período surge o pensamento de Kant que na Critica da faculdade do Juízo afirma que num organismo, as partes também existem por meio de cada outra, no sentido de produzirem uma outra. "Devemos pensar em cada parte como um órgão", escreveu Kant, "que produz as outras partes (de modo que cada uma, reciprocamente, produz a outra)[...] Devido a isso, [o organismo] será tanto um ser organizado como auto-organizador."[iv] Com esta afirmação, Kant tornou-se não apenas o primeiro a utilizar o termo "auto-organização" para definir a natureza dos organismos vivos, como também o utilizou de uma maneira notavelmente semelhante a algumas concepções contemporâneas.
Uma outra visão de ciência que se opõe ao mecanicismo é chamada de vitalismo que, apesar de em muitos pontos concordar com a recente visão organísmica/holista, propõe uma outra maneira de explicar os fenômenos da vida deixados inexplicados pelo modelo mecanicista. Os vitalistas afirmam que alguma entidade, força ou campo não-físico deve ser acrescentada às leis da física e da química para se entender a vida, estabelecendo uma organização vinda de fora.


[i] Prigogine & Stengers, 1984: 64
[ii] Brenner, apud Capra, 1999: 115
[iii] Aristóteles, 2005: IX, 8, 1050  a 23
[iv] Kant, 1995: 253

ARISTÓTELES. Metafísica. 2ª ed. Tradução: Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola 2005.

CAPRA, Fritjof. O ponto de Mutação. 22ª ed. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1999.
KANT, Imannuel. Critica da Faculdade do Juízo. 2ª ed. Tradução: Valério Rohden e Antonio Marques. Rio de Janeiro: Forense universitária: 1995.

PRIGOGINE, Ilya & ISABELLE Stengers. A Nova Aliança, A Metamorfose da Ciência. Tradução: Miguel Faria e Maria Joquia Machado Trincheira. Brasília: Editora universidade de Brasília, 1984.



quinta-feira, 16 de setembro de 2010

“O QUE É VIDA?”: UM RETORNO AO ESTUDO DO SER VIVO - A natureza da Vida parte 2

O paradigma reducionista é ramificado em dois outros principais paradigmas: o mecânico racional e o mecânico estatístico: O paradigma mecânico racional tem o propósito de explicar e descrever o objeto investigado. Para elucidá-lo analisa-se a estrutura a qual determina as funções desse objeto. A estrutura é considerada a causa, a condição necessária e suficiente do efeito e da função do objeto. Esse paradigma teve seu apogeu no século XIX e explicava a racionalidade do homem a partir de causas mecânicas. O paradigma mecânico estatístico ou paradigma evolucionista marca a passagem de análises micros (realizadas por biólogos e sociólogos) para análises macros realizadas por físicos, matemáticos e engenheiros. A teoria da evolução das espécies e o desenvolvimento da Termodinâmica incorporam a visão dos movimentos dinâmicos e das transformações irreversíveis da estrutura no tempo, em contraponto à visão reversível do paradigma da mecânica racional. A incorporação do conceito de sistema fechado leva ao objeto fundamental deste paradigma: estudar a estrutura associada à evolução e à seqüência de transformações internas do objeto.
Observa-se que o paradigma reducionista proporcionou muitos progressos para a ciência, mas, apesar do sucesso desse método, cientistas de várias áreas perceberam que os sistemas com muitas interações e propriedades emergentes careciam de um método mais sistêmico para guiá-los. Nessa situação, Fritjof Capra[i] argumenta que alguns pesquisadores começaram a observar que as soluções oferecidas pelas equações de Newton restringia-se a fenômenos simples e regulares, enquanto a complexidade de várias áreas pareciam esquivar-se a qualquer investigação mecanicista. Um exemplo bastante ilustrativo são os fenômenos relacionados com a vida
Na concepção mecanicista clássica, um organismo é reduzido a seus menores componentes, como faríamos ao estudar uma máquina, como, por exemplo, uma bicicleta, na qual uma vez compreendidas suas peças podemos deduzir seu funcionamento exaustivamente. “Em biologia, a concepção cartesiana dos organismos vivos como se fossem máquinas, constituídas de partes separadas, ainda é a base da estrutura conceitual dominante.”[ii] A dissecação é o método predileto dos biólogos mecanicistas para o estudo dos organismos vivos, ou seja, eles se sentem mais a vontade quando o seu objeto de estudo já não vive mais. Por traz dessa pratica está um conceito importante. O de que estudando suas partes constituintes podemos compreender exaustivamente o organismo vivo.
Um exemplo bastante ilustrativo dessa concepção é a vigorosa elaboração desse conceito feita pelo famoso humanista e existencialista Soren Kierkegaard:
O quadro científico do mundo real à minha volta é muito deficiente. Ele nos dá muitas informações factuais, coloca toda a nossa experiência numa ordem magnificamente consistente, mas mantém um silêncio horrível sobre tudo aquilo que está realmente próximo de nossas corações, de tudo aquilo que é realmente valioso e caro em nossas vidas, aquilo que realmente nos interessa. Este quadro não nos pode dizer nada sobre o valor do vermelho ou do azul, do amargo e do doce, dor física e prazer físico; nada sobre o belo e o feio, o bom e o mau. É incompetente para dizer qualquer coisa válida sobre Deus e a eternidade... Assim, em suma, não pertencemos realmente a este mundo descrito pelo quadro científico. Não estamos realmente nele. Estamos fora dele. Somos como espectadores de uma peça que insiste em demonstrar que o mundo é uma máquina cega, onde aparecemos fortuitamente para, logo, desaparecer. Apenas nossos corpos parecem se enquadrar no quadro, sujeitos às leis que regem o quadro, explicados linearmente pelo quadro... Eu não pareço ser necessário como ser humano, ou como autor... As grandes mudanças que ocorrem neste mundo material, das quais eu me sinto parcialmente responsável, cuidam de si mesmas, segundo o quadro - elas são amplamente explicadas pela interação mecânica direta (...) Isso torna o mundo operacional para o entendimento pragmático. Permite que você imagine a manifestação total do universo como a de um relógio mecânico que, pelo o que sabe e crê a ciência, poderia continuar a funcionar do mesmo jeito sem que nunca tivesse havido consciência, vontade, esforço, dor, prazer e responsabilidade...[iii]
E essa visão persiste através do século XX com o jovem biólogo Joseph Needham[1]: “O mecanicismo e o materialismo estão na base do pensamento cientifico.”[iv] Sobre a mente, um dos fenômenos da vida mais intrigantes e que teremos oportunidade de tratar mais adiante neste trabalho, ele diz: “não aceito, em absoluto, a opinião de que os fenômenos da mente não são passiveis de descrição físico-química. Tudo o que for cientificamente dado a conhecer sobre eles será mecanicista[...]”[v] Em resumo de sua posição ele coloca o homem da seguinte forma: “Em ciência, o homem é uma máquina; ou, se não é, então não é absolutamente nada.”[vi]
O apogeu do mecanicismo no século XX foi a consolidação da genética como sendo a base de toda a vida e tem como data significativa o seqüênciamento do código genético do ser humano em 2003 . “Os fenômenos biológicos que não podem ser explicados em termos reducionistas são considerados indignos de investigação.”[vii] Assim esses fenômenos são completamente ignorados. Embora essa concepção tenha sido dominante durante boa parte da história da ciência moderna, ela encerra em si profundas limitações. Quanto a isso o eminente biólogo Paul Weiss observou:
Podemos afirmar definitivamente... com base em investigações estritamente empíricas, que a pura e simples inversão de nossa anterior dissecação analítica do universo, procedendo-se à reunião de todas as suas peças, seja na realidade ou apenas em nossa mente, não pode levar a uma explicação completa do comportamento sequer do mais elementar sistema vivo.[viii]
A partir do momento em que os cientistas dissecam, reduzem, um organismo como um todo a seus componentes constituintes mínimos, sejam as células, os genes ou as partículas fundamentais. Ao tentar, desse modo, explicar todos os fenômenos em função desses elementos, eles deixam de perceber o sistema vivo de forma integral e passam a ter uma visão fragmentada desse organismo, eles não podem mais perceber as atividades coordenadoras do sistema como um todo. “Os problemas que os biólogos não podem resolver hoje, ao que parece em virtude de sua abordagem estreita e fragmentada, estão todos relacionados com a função dos sistemas vivos como totalidade e com suas interações com o meio ambiente.”[ix]
Um exemplo bastante elucidativo ocorreu por volta de 1970, quando o DNA e os mecanismos de hereditariedade dos organismos unicelulares ― por exemplo, as bactérias ― estavam desvendados, porém ainda faltavam os dos organismos multicelulares. Isso colocou os cientistas diante de problemas que ainda não haviam sido encarados como o desenvolvimento e a diferenciação celular, Capra nos coloca mais claramente esse problema:
Nos estágios iniciais do desenvolvimento de organismos superiores, o numero de suas células passa de uma para duas, para quatro, oito, dezesseis, e assim por diante. Dado que se pensa ser a informação genética idêntica em cada célula, como pode acontecer que as células se especializem de maneiras diferentes, tornando-se células musculares, sanguíneas, ósseas, nervosas, etc?[x]
Está claro, depois dessa explicação, que o critério para diferenciação não se encontra somente na célula individual, demonstrando assim a incapacidade da visão mecanicista reducionista de lidar com esse fenômeno básico que encontra variações em toda biologia.


[1] Needham mais tarde veio a se tornar um dos mais eminentes defensores da visão organicista.


[i] Capra, 2002
[ii] Capra, 1999: 96
[iii] Kierkegaard, apud Guimarães, 1996, p. 21, 22
[iv] Needham, apud Capra, 1999: 101
[v] Needham, apud Capra, 1999: 101
[vi] Needham, apud Capra, 1999: 101
[vii] Capra, 1999: 96
[viii] Weiss, apud Capra, 1999: 96
[ix] Capra, 1999: 97
[x] Capra, 1999: 113

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

“O QUE É VIDA?”: UM RETORNO AO ESTUDO DO SER VIVO - A natureza da Vida parte 1


Desde a Grécia o estudo da filosofia tem se mantido vacilante entre o estudo da substância e o da forma, da estrutura e do padrão. Entre dois tipos de perguntas inquietantes. Para tentar estabelecer a estrutura constituinte do objeto estudado, seja ele qual for: “Do que ele é feito?”, “Qual é a sua substância?”, “Qual é o seu ser?” (matéria, estrutura, quantidade). Com o objetivo de encontrar um “modo” como os fenômenos ocorrem: “Qual é o padrão?”, “Qual a relação entre ...?”, “Que tipo de organização perpassa esses objetos?” (padrão, ordem, qualidade). O estudo dos processos, por sua vez, estava inserido e confundido com o dos padrões. Desde então o estudo das essências tem suplantado o estudo do padrão, que apesar de relegado ao segundo plano, não perdeu sua importância. Agora, porém as coisas começam a se inverter e então, padrão e processo começam a ser percebidos como conceitos fundamentais para a compreensão de diversos fenômenos, principalmente os relacionados com a vida.
A lógica de funcionamento da ciência clássica nasceu no mundo grego antigo, o objetivo da qual era a busca da simplificação dos fenômenos e a descrição completa da natureza por meio de leis simples. Essa lógica diz respeito aos conceitos, proposições, inferências, julgamentos e raciocínios simplificadores, fundamentos que foram propostos no Organon[1], de Aristóteles.[i]
A ciência clássica se fundamenta em quatro princípios: o princípio da ordem, o princípio da separabilidade, o princípio da redução e o princípio da lógica indutivo-dedutivo-identitária, os quais funcionam num ambiente de certeza e busca pela simplificação da complexidade existente nos fenômenos[ii].
O princípio da ordem postula que o universo é regido por leis imutáveis, visão do qual, nasce a concepção determinista e mecânica do mundo. Assim, toda desordem considera-se como carência de conhecimento, para torná-la ordem. O princípio da separabilidade segue a lógica de que, para resolver um problema, é preciso decompô-lo em elementos simples. O princípio da redução se alicerça na idéia de que o conhecimento dos elementos de base do mundo físico e biológico é indispensável, enquanto o conhecimento do conjunto de processos, mudanças e diversidade é secundário. Esse princípio tende a reduzir o conhecível àquilo que é mensurável, quantificável, formalizável, seguindo os preceitos de Galileu, que só considerava os fenômenos que podiam ser descritos por meio de quantidades mensuráveis[iii]. O princípio da lógica indutivo-dedutivo-identitária está associado à razão. A indução, a dedução e os três axiomas de Aristóteles (identidade, contradição, exclusão) asseguram a validade formal das teorias e raciocínios.
Edgar Morin[iv] destaca que os quatro princípios são interdependentes e reforçam-se mutuamente. Disjunção e redução eliminam o que não é redutível à ordem, às leis gerais, às unidades elementares. Esses princípios ocultam a constante presença da desordem no mundo e o problema da organização. A conjunção dos quatro princípios, portanto, determina o pensamento simplificador, submisso à hegemonia da disjunção, da redução e do cálculo.
O nascimento da ciência moderna é atribuído a uma grande variedade de circunstâncias, eventos e pessoas, mas é inquestionável a importância de René Descartes, filósofo francês, quem primeiro articulou os fundamentos do moderno método científico de pesquisa. Pode-se dizer que a maior contribuição da abordagem de Descartes foi a idéia de que os sistemas complexos podem ser compreendidos pela análise de uma de suas partes, no tempo, e, a partir da compreensão dessa parte, atribuir suas conclusões ao sistema como um todo, compreendendo-se o contexto. Com esse objetivo, Descartes, em 1619, formulou quatro preceitos básicos que fundamentam um método universal para conduzir a razão[v].
O primeiro é o da evidência: postula que nunca se deve aceitar nada como verdadeiro, se não é possível provar. Em outras palavras, tem-se de evitar cuidadosamente a precipitação e a previsão. O segundo é o da redução: pressupõe a divisão das dificuldades encontradas para a resolução de um problema na máxima quantidade de partes que facilite essa resolução. O terceiro é o da causalidade: estabelece uma ordem hierárquica para facilitar o conhecimento dos objetos. Inicia-se pelos elementos mais simples e mais fáceis de identificar, evoluindo-se para objetos complexos e mais difíceis. O quarto é o da exaustividade: retoma os três primeiros preceitos, perfazendo enumerações tão completas e revisões tão gerais do objeto estudado que se supõe ter o total conhecimento desse objeto.
Os quatro preceitos, instituídos por Descartes, marcam a passagem da ciência clássica para a ciência moderna: a primeira norteada pela filosofia aristotélica; a segunda guiada pelo pensamento cartesiano. Enquanto a Ciência Clássica associava a Ciência à Filosofia, a Ciência Moderna, estabelecida por Descartes, dissocia a Ciência da Filosofia[vi]. Assim, apesar de continuar com o objetivo da redução herdada da lógica da ciência clássica, a mudança, estabelecida por Descartes na ciência moderna, conduziu à elaboração de um conhecimento científico com especificações metodológicas, com princípios e regras que fazem desse conhecimento objetivo e universal.
O Quadro a baixo apresenta um resumo dos princípios da ciência clássica e dos preceitos da ciência moderna.
Quadro 01. Ciência Clássica e Ciência Moderna

 
Ciência Clássica
Ciência Moderna
Lógica de fundamento: Simplificação
Lógica de fundamento: Simplificação
Base de lógica: Filosofia Aristotélica
Ciência associada à Filosofia
Base de lógica: Pensamento Cartesiano
Ciência dissociada da Filosofia
Princípios Básicos
Preceitos básicos
1. Princípio da ordem
1. Preceito da evidência
2. Princípio da separabilidade
2. Preceito da redução
3. Princípio da redução
3. Preceito da causalidade
4. Princípio incutivo-dedutivo-identitário
4. Preceito da exaustividade
Observando-se o Quadro, nota-se que as lógicas de funcionamento das ciências clássica e moderna são as mesmas, mas com fundamentações diferentes. Enquanto a ciência clássica se embasa na filosofia aristotélica, a ciência moderna se fundamenta no pensamento cartesiano. No caso da ciência clássica, Filosofia e Ciência são associadas para determinar os princípios norteadores. Já a ciência moderna desconsidera as interferências da Filosofia na construção da Ciência.


[1] Organon é a denominação dada por Aristóteles à lógica que, para ele, significava um instrumento de conhecimento e não o juiz do conhecimento.


[i] PRIGOGINE, Ilya & ISABELLE Stengers. A Nova Aliança, A Metamorfose da Ciência. Tradução: Miguel Faria e Maria Joquia Machado Trincheira. Brasília: Editora universidade de Brasília, 1984.
[ii]MORIN, Edgar. LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Tradução: Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis,2000.
[iii] GLEICK, James. Caos: a criação de uma nova ciência. 11ª ed. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Camus, 1989.
[iv]
MORIN, Edgar. O método 1: da natureza da natureza; Tradução: Ilana Heineberg. 2ª edição. Porto Alegre: v. 1, sulina, 1977.
[v] DESCARTES, Rene. Discurso sobre o método. In: Descartes. São Paulo: ed. Abril, 1980 (Os pensadores)
[vi]MORIN, Edgar. O método 2: a vida da vida; Tradução: Marina Lobo. Porto Alegre: v.2 sulina, 1980.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

“O QUE É VIDA?”: UM RETORNO AO ESTUDO DO SER VIVO - Introdução



O Presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia provinha da Ásia Oriental e era mulher. Chamava-se Chee Li-hsing e os trajes transparentes que usava — encobrindo o que queria encobrir só pelo brilho — davam a impressão de que andava envolta em plástico.
— Eu compreendo que você queira ter todos os direitos humanos — disse ela. — A história também registra momentos em que populações inteiras lutaram para conquistar a plenitude dos direi tos humanos. Mas quais são os que você acha que lhe faltam.
— Uma coisa bem simples, como, por exemplo, o meu direito à vida — afirmou Andrew. — Um robô pode ser destruído a qualquer hora.
— Com o homem acontece o mesmo.
— Sim, mas para que seja executado existem procedimentos legais. E para a minha destruição não há necessidade de processo nenhum. Basta uma ordem, dada por autoridade competente, e estou perdido. Depois... depois...
Andrew fez um esforço desesperado para não demonstrar qualquer sinal de que estivesse implorando alguma coisa, mas se deixou trair por esgares faciais — tão cuidadosamente programados quando foi feito — e pelo tom de voz.
— Na verdade, o que eu quero é ser homem. Venho sonhando com isso há seis gerações de seres humanos.
Li-hsing contemplou-o com a maior compreensão nos olhos escuros.
— A legislatura pode promulgar uma lei que o declare como tal. Querendo, pode até decretar que uma estátua de pedra seja considerada como pessoa humana. Mas a possibilidade de que isso aconteça é tão remota no primeiro como no segundo caso (I. Asimov, O homem bicentenário, 1972).
Andrew é um robô. Neste momento da estória, ele está solicitando ao congresso mundial que o considere humano e, portanto, vivo.  A petição é negada neste momento, mas ocorre-me uma questão, em que base ela é negada? Neste momento Andrew, um robô, é indistinguível de um ser humano na aparência e, como podemos notar pelo texto, no comportamento. Creio que decidir se Andrew é humano ou não é uma questão muito complexa para ser abordada neste estudo. Mas se Andrew pretende ser humano deve antes ser considerado vivo e não me parecem eficientes, mediante a ciência clássica, os critérios para se distinguir algo vivo de algo não-vivo. Assim nas próximas paginas, será apresentada uma discussão sobre o que vem a ser “vida” e suas principais características na ciência contemporânea.
Como vimos na pequena estória acima, a distinção de vida e não-vida é relevante em diversas áreas do conhecimento e ciências dos seres humanos. Saber se um determinado objeto é vivo determina a maneira como vamos lidar com ele e como vamos estudá-lo. Questões técnicas e éticas são determinadas a partir da atribuição de vida a um determinado objeto. A partir da implantação de um novo conceito de vida surgem novos e instigantes problemas a serem resolvidos pela ciência.
Como diferenciar “vida” de não-vida? Pretendemos responder essa questão a partir do ponto de vista da ciência dita holista, sistêmico ou ainda organicista. Usaremos esta concepção por acreditarmos que, diferentemente do modelo clássico, podemos ter uma caracterização mais completa e precisa desta diferença.
A ciência clássica se fundamenta em quatro princípios: o princípio da ordem, o princípio da separabilidade, o princípio da redução, reversibilidade no tempo e o princípio da lógica indutivo-dedutivo-identitária, os quais funcionam num ambiente de certeza e busca pela simplificação da complexidade existente nos fenômenos (MORIN, 2000).  Para a ciência clássica os sistemas complexos podem ser compreendidos pela análise de uma de suas partes, no tempo, e, a partir da compreensão dessa parte, atribuir suas conclusões ao sistema como um todo, compreendendo-se o contexto. Com esse objetivo, Descartes, em 1619, formulou quatro preceitos básicos que fundamentam um método universal para conduzir a razão: evidencia, redução, causalidade, exaustividade. (DESCARTES, 1980). Nesta concepção não há espaço para os fenômenos da “vida”, pelo fato de esses fenômenos não serem passiveis de simplificação. Como os fenômenos relacionados com vida são sempre complexos e irreversíveis, da mesma forma esses fenômenos são caracterizados por sua resistência a serem modificados intencionalmente, o que frustra as tentativas de domínio exercidas pelo cientista clássico.
No presente estudo devemos apontar novas tendências da ciência no que diz respeito às ciências da vida. E, ainda, encontrar alguns dos novos critérios que a ciência contemporânea tem utilizado para estudar a vida e os fenômenos a ela relacionados. A idéia-chave do meu trabalho consiste em expressar esses critérios em termos das três dimensões conceituais: padrão, estrutura e processo. Todos os três critérios são totalmente interdependentes. O padrão de organização, como definido por Maturana e Varela, só poderá ser reconhecido se estiver incorporado numa estrutura física, como definida por Prigogine, e nos sistemas vivos essa incorporação é um processo em andamento, como definido por Baterson e mais tarde por Maturana e Varela. Assim, estrutura, padrão e processo estão inextricavelmente ligados. Pode-se dizer que os três critérios são três perspectivas diferentes, mas inseparáveis do fenômeno da vida. Formarão as três dimensões conceituais de meu trabalho. Essas três dimensões conceituais tem por base o pensamento sistêmico, que significa a captação da totalidade orgânica, una e diversa em suas partes sempre articuladas entre si dentro da totalidade e constituindo esta totalidade.
A seleção do referencial teórico deveu-se à busca de alternativas que fossem mais apropriadas ao tratamento das características inerentes aos sistemas complexos (muitas partes diferentes, conectividade entre as partes, comportamento difícil de gerenciar e prever e impossibilidade de analisar as partes independentes do todo). Desse modo, para compreendê-los, é necessário utilizar um paradigma[*] científico que considere a complexidade do objeto investigado e as impressões do observador sobre esse objeto.
Sendo assim, emprega-se o paradigma sistêmico por associar o observador ao objeto observado. Em outras palavras, associa sujeito e objeto, em contraponto ao paradigma reducionista. Este dissocia o sujeito do objeto, desconsiderando as intervenções do sujeito no objeto investigado. Edgar Morin (1977, p.29) observa que “há uma necessidade histórica de encontrar um método que detecte e não que oculte as ligações, as articulações, as solidariedades, as implicações, as imbricações, as interdependências e as complexidades entre sujeito e objeto.” o paradigma sistêmico introduz uma renovação epistemológica, por trazer uma proposta diferente da estabelecida pelas ciência clássica e moderna, representadas pelos preceitos cartesianos. O enfoque sistêmico direciona a atenção, especialmente, ao estudo dos sistemas complexos. Como exemplo, citam-se os sistemas de natureza psicológica, social e biológica. Esse enfoque deve ser entendido como uma reação à percepção reducionista (cartesiana) de interpretação da realidade. Logo, observa-se que o paradigma sistêmico possui um enfoque que suporta as pesquisas fundamentadas nas Ciências da Complexidade[†], motivo pelo qual é adotando como direcionador para a elaboração deste trabalho.
Utilizarei para este estudo diversas áreas da ciência tais como a biologia, ecologia, medicina, física, química, matemática, cibernética, alem é claro de todo arcabouço teórico da filosofia moderna e contemporânea. Pretendo com isso dar uma maior abrangência ao estudo e, assim, chegar a uma idéia mais precisa do que é vida e dos seus pormenores.






[*] Um paradigma significa um modelo, algo que serve como parâmetro de referência para uma ciência, como um farol ou estrutura considerada ideal e digna de ser seguida. Podemos dizer que um paradigma é a percepção geral e comum - não necessariamente a melhor - de se ver determinada coisa, seja um objeto, seja um fenômeno, seja um conjunto de idéias. Ao mesmo tempo, ao ser aceito, um paradigma serve como critério de verdade e de validação e reconhecimento nos meios onde é adotado. (Kuhn, 1990. p. 9 - 27 e 219 – 24)
[†] As Ciências da Complexidade se dividiram em muitos ramos, os quais tiveram seu desenvolvimento associado, na maioria, a um campo específico da ciência e a objetivos diferenciados. Podem-se destacar: a Cibernética, a Teoria Geral de Sistemas, os Sistemas Dinâmicos, a Teoria do Caos e a Teoria da Complexidade. Todos esses ramos têm como objetivo comum compreender a complexidade existente nos sistemas.


ASIMOV, Isaac. O Homem Bicentenário. Tradução: Agatha M. Auerspeg. São Paulo: Hemus, 1972.
 MORIN, Edgar. LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Tradução: Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis,2000.

DESCARTES, Rene. Discurso sobre o método. In: Descartes. São Paulo: ed. Abril, 1980 (Os pensadores)


MORIN, Edgar. O método 1: da natureza da natureza; Tradução: Ilana Heineberg. 2ª edição. Porto Alegre: v. 1, sulina, 1977.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Carl Sagan - Bilhões e Bilhões


Com suas revelações sobre um pequenino mundo embelezado pela musica e pelo amor, a nave Voyager já saiu do sistema solar e se dirige ao mar aberto do espaço interstelar. A uma velocidade de 70 mil quilômetros por hora, projeta-se em direção às estrelas e a um destino com o qual só podemos sonhar. Estou cercada por pacotes do correio, cartas de pessoas de todo o planeta que lamentam a perda de Carl. Muitos lhe dão o crédito por tê-los despertado. Alguns dizem que o exemplo de Carl os inspirou a trabalhar pela ciência e pela razão contra as forças da superstição e do fundamentalismo. Esses pensamentos me consolam e me resgatam de minha dor. Permitem que eu sinta, sem recorrer ao sobrenatural, que Carl vive.