sábado, 24 de setembro de 2011

“O QUE É VIDA?”: UM RETORNO AO ESTUDO DO SER VIVO - Autopoiese: o padrão da vida - parte 2



O conceito de hiperciclo é uma das concepções-chave pra entender a auto-organização. Porém, hesita-se de chamar um hiperciclo de “vivo”. Então, o que caracteriza um organismo vivo? Autopoiese. Conceito introduzido, segundo Capra,[i] a partir de 1970 por Humberto Maturana e Francisco Varela, dois neurocientistas chilenos. Para eles esse conceito é “necessário e suficiente para caracterizar a organização dos sistemas vivos”.
O que vem a ser autopoiese exatamente? O termo vem do grego, naturalmente, auto quer dizer “si mesmo” e poiese “criação”, e a partir da criação desse novo termo cunha-se uma nova idéia. Autopoiese é um sistema organizado em forma de rede, não-linear, auto-organizado, ou seja, ela é produzida por seus componentes e ao mesmo tempo produz esses componentes. Nas palavras de Maturana e Varela: “o ser e o fazer dos [sistemas vivos] são inseparáveis, e esse é o seu modo específico de organização”[ii]. Porém, essas características já estão presentes no hiperciclo, o que distingue a autopoiese é a formação de uma fronteira, um limite auto-imposto que restringe o campo de atuação da rede, diferentemente de um hiperciclo que não tem um limite auto-imposto. A formação dessa fronteira define o sistema como uma unidade distinta, por esse motivo as redes catalíticas, que tem sua fronteira estabelecida por fatores como o recipiente onde se encontra, não pode ser considerada um sistema vivo. Outra característica importante é que um sistema vivo é ao mesmo tempo aberto e fechado. Ele é aberto ao fluxo de matéria e energia, ou seja, ele está em constante troca com o meio ambiente. Porém, ele é fechado organizacionalmente, e esse fechamento implica que o organismo tenha sua ordem não imposta pelo meio ambiente, mas pelo próprio sistema. Podemos concluir então que os sistemas vivos são autônomos.
Um esclarecimento importante a ser feito é que essa caracterização de forma alguma inclui informações sobre os elementos físicos do sistema, ou seja, sua estrutura. “Nenhuma informação detalhada sobre o funcionamento do mecanismo genético pode emergir de uma descrição geral de sua estrutura.”[iii]. A estrutura é formada pelas relações de fato entre os elementos físicos, “a estrutura do sistema é a corporificarão física de sua organização.”[iv]. Trataremos da estrutura mais a diante. A organização é o conjunto de relações entre esses componentes que determina a classificação desse sistema como sendo animal ou vegetal, humano ou bacteriano, ou seja, definindo a classe. “A descrição dessa organização é uma descrição abstrata de relações e não identifica os componentes.”[v]. “Não obstante, nosso problema é o da organização viva e, portanto, nosso interesse não estará nas propriedades dos componentes, mas sim, em processos e nas relações entre processos realizados por meio de componentes.”[vi].
Vimos, até agora, nesse estudo uma ênfase na ordem. Contudo, o caos também deixa sua marca como fator imprescindível na formação e manutenção de sistemas vivos. O comportamento caótico é uma derivação direta da não-linearidade e da realimentação dos sistemas vivos. Retornemos mais uma vez ao nosso exemplo da teia alimentar, nesse caso vamos isolar a observação da população de uma espécie qualquer, vamos chamá-la de espécie de controle. Na concepção Malthusiana clássica a população seria calculada por uma função simples de crescimento ilimitado: x próximo = rx (ver Figura 03). Onde, r seria a taxa de crescimento e x a população. Assim a espécie de controle teria sua população aumentada constante e indefinidamente, porem, a observação direta contradiz essa intuição inicial, as populações reais não crescem indefinidamente.
 Figura 03
“Um ecologista que imaginasse peixes reais num tanque real, teria de encontrar uma função que correspondesse às cruas realidades da vida – por exemplo, a realidade da fome, ou da competição.”[vii]. Para obtermos uma equação mais próxima do real, que descrevesse “os fluxos e refluxos da vida.”[viii], devemos introduzir um conceito fundamental, como já vimos, para os fenômenos da vida a realimentação. Uma variante da equação de Thomas Robert Malthus seria suficiente: x próximo = rx(1-x). Onde, x é a população, r é a taxa de crescimento e 1-x seria uma constante de controle que introduz a realimentação, essa equação é conhecida como equação da diferença logística, e essa pequena modificação introduz novos e surpreendentes fatores. Na equação anterior, independente da taxa de crescimento, nos teríamos um gráfico bastante semelhante ao da figura 02, contudo, com nossa formula modificada temos variações radicais a medida que a taxa de crescimento vai aumentando, vejamos então nosso gráfico com as taxas:1,7 (figura 04), 2,7 (figura 05), 3,7 (figura 06), 4,0 (figura 07). A seguir uma explicação sobre as conclusões tiradas de cada uma delas.
Figura 04
 Figura 05
Figura 06
Figura 07
O que nós temos no primeiro caso (figura 04) é um crescimento estável que chega ao ponto de equilíbrio o mais rápido possível. No segundo caso (figura 05) temos um breve período de instabilidade após o qual entramos em equilíbrio, esse é um caso típico que ocorre na natureza quando a população sofre uma elevação moderada em um ambiente equilibrado, provavelmente é o que ocorreria com nossa população de controle de peixes num tanque. No terceiro caso (figura 06) a população oscila sem atingir os extremos, oscila caoticamente sem atingir um ponto de equilíbrio. Isso quer dizer que a população de nossos peixes sofrerá variações caóticas, ou seja, sem padrão obvio, caso tenha uma taxa de crescimento muito alta. Aumentar a taxa de crescimento significa aumentar a não-linearidade do sistema “e isso modificava o resultado não só quantitativamente, mas também qualitativamente. Afetava não só a população final em equilíbrio, mas também a sua possibilidade de chegar a qualquer equilíbrio.”[ix]. Em caso de uma taxa limite (figura 07) o que temos após uma oscilação muito brusca é uma queda da população à baixo de zero, ou seja, extinção.

CAPRA, Fritjof. A Teia Da Vida. 7ª ed. Tradução: Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2002.
MATURANA, HUMBERTO E FRANCISCO VARELA. Autopoiesis and Cognition. In CAPRA, Fritjof. A Teia Da Vida. 7ª ed. Tradução: Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2002.
SCHRÖDINGER, Erwin. O que é vida? O aspecto físico da célula viva seguido de mente e matéria e fragmentos autobiográficos. Tradução: Jesus de Paula Assis e Vera Yukie Kuwajima de Paula Assis. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
GLEICK, James. Caos: a criação de uma nova ciência. 11ª ed. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Camus, 1989.

imagem: http://leonidafremov.deviantart.com/art/FALL-FOREST-AFREMOV-259197944?q=gallery%3Aleonidafremov%2F49189&qo=56

[i] Capra, 2002
[ii] Maturana e Varela, apud Capra, 2002: 136
[iii] Schrödinger. 1997: 79
[iv] Capra. 2002: 89
[v] Capra, 2002: 89
[vi] Maturana e Varela, apud Capra, 2002: 89
[vii] Gleick, 1989: 58
[viii] Gleick, 1989: 56
[ix] Gleick, 1989: 66

terça-feira, 17 de maio de 2011

“O QUE É VIDA?”: UM RETORNO AO ESTUDO DO SER VIVO - Autopoiese: o padrão da vida - parte 1

  
Nessa parte de nosso estudo enfatizaremos o padrão, já que é o padrão que determina se um organismo é vivo ou não-vivo[i], sem, contudo, nos esquecermos da forma, e muito menos de que a vida é também um processo. Entendemos padrão como uma determinada organização que se repete dentro de um universo de seres estudados. Identificamos o “padrão de rede” como o padrão fundamental dos sistemas vivos, pois, ao observarmos a natureza, percebemos que o “padrão de rede” está presente em toda parte, por exemplo, nas teias alimentares, no modo como os organismos, partes de organismos ou comunidades de organismos se arranjam e interagem entre si.
Quando pensamos em rede no que estamos pensando? Não-linearidade é a primeira característica, e a principal, que podemos notar quando examinamos uma rede. Por exemplo, quando examinamos uma teia alimentar (figura 01): O que ocorre com um animal morto? Parte dele é comida por carniceiros, parte é decomposta no solo por bactérias; os carniceiros por sua vez eliminam os resíduos da digestão que também sevem de alimento a outros animais e a bactérias; as bactérias por sua vez adubam o solo para o crescimento de vegetação, que serve de alimento para outros animais que também morrerão por sua vez. O que percebemos com isso? De um determinado evento não se seguem eventos apenas numa única direção, mas sim em várias direções que ocasionalmente pode se encontrar, configurando assim um laço de realimentação. (figura 02).

Figura 01


                                                  Teia alimentar

  Figura 02

                               Laço fechado de realimentação
Realimentação é outra característica que eventualmente pode ocorrer em uma rede, mas é fundamental nas redes formadas e formadoras de sistemas vivos. O conceito de realimentação foi introduzido pelos ciberneticistas Norbert Wiener, Julian Bigelow e Arturo Rosenblueth em 1943. Ela ocorre quando numa determinada seqüência de eventos, um evento começa a influenciar em sua causa. Nas palavras de Fritjof Capra:
Um laço de realimentação é um arranjo circular de elementos ligados por vínculos causais, no qual uma causa inicial se propaga ao redor das articulações do laço, de modo que cada elemento tenha um efeito sobre o seguinte, até que o último “realimenta” (feeds back) o efeito sobre o primeiro elemento do ciclo. A conseqüência desse arranjo é que a primeira articulação ("entrada") é afetada pela última ("saída"), o que resulta na auto-regulação de todo o sistema, uma vez que o efeito inicial é modificado cada vez que viaja ao redor do ciclo.[ii]
Retornando ao exemplo da teia alimentar, a adubação do solo, proporcionada pelas bactérias, propicia o crescimento de vegetais, que por sua vez produzem oxigênio e servem de alimento direto aos animais, que ao morrer servem de alimento as bactérias. Mostrando, como disse Wiener, o “controle de uma máquina com base em seu desempenho efetivo, e não com base em seu desempenho previsto”.[iii] Assim, as bactérias, de certa maneira, proporcionam e regulam não só a vida das bactérias, mas também de todo o sistema e o mesmo poderíamos dizer dos outros elementos da rede.
Um fator interessante sobre os laços fechados de realimentação (ou hiperciclos) é a sua capacidade de evolução. Partido de uma relação causal interativa em um hiperciclo temos que: a interferência de um elemento externo ao laço causa uma instabilidade que obriga o hiperciclo a entrar em equilíbrio novamente, ou seja, absorver a interferência e lidar com ela, a partir desse ponto, como fazendo parte do laço “e criando níveis de organização sucessivamente mais elevados”[iv]. Vemos com isso a capacidade do hiperciclo de se adaptar ao meio, recebendo e resolvendo as interferências. Na natureza encontramos os hiperciclos em sistemas de reações especiais, que foram estudados por Manfred Eigen, e que foram chamados “ciclos catalíticos”. Quando Eigen estudava reações catalíticas envolvendo enzimas, em 1960, percebeu a presença de redes complexas, em sistemas afastados do equilíbrio, que podiam conter laços fechados de realimentação. “Esses ciclos catalíticos estão no cerne de sistemas químicos auto-organizadores[...] e também desempenham um papel essencial nas funções metabólicas dos organismos vivos.”[v].
O conceito de hiperciclo é uma das concepções-chave pra entender a auto-organização. Porém, hesita-se de chamar um hiperciclo de “vivo”. Então, o que caracteriza um organismo vivo? Autopoiese. Conceito introduzido, segundo Capra,[vi] a partir de 1970 por Humberto Maturana e Francisco Varela, dois neurocientistas chilenos. Para eles esse conceito é “necessário e suficiente para caracterizar a organização dos sistemas vivos”.


[i] Capra, 2002: 135
[ii] Capra, 2002: 59
[iii] Wiener, apud Capra, 2002: 59
[iv] Capra, 2002: 86
[v] Capra, 2002: 85
[vi] Capra, 2002



CAPRA, Fritjof. A Teia Da Vida. 7ª ed. Tradução: Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2002.
imagem: http://leonidafremov.deviantart.com/art/AUTUMN-FOG-L-AFREMOV-189429686

terça-feira, 9 de novembro de 2010

“O QUE É VIDA?”: UM RETORNO AO ESTUDO DO SER VIVO - A natureza da Vida - parte 4

Na atualidade começam a surgir novas correntes de pensamento que se contrapõe ao pensamento mecanicista por considerá-lo inadequado para descrever diversos fenômenos naturais, devido a impossibilidade de se reduzir os fenômenos relacionados com vida a leis matemáticas simples. Uma dessas correntes de pensamento é o chamado pensamento holista ou sistêmico ou ainda organicista, que consiste numa tentativa de perceber os fenômenos como um todo inseparável, um modelo científico que se baseia no conceito de relação, que é muito mais amplo que o de análise, como o usado pela ciência clássica. Já não são somente as partes constituintes de um corpo ou de um objeto que são de fundamental importância para a compreensão da natureza desse objeto, mas o modo como se expressa todo esse objeto, e como ele se insere em seu meio. O holismo não significa a soma das partes, mas a captação da totalidade orgânica, una e diversa em suas partes, mas sempre articuladas entre si dentro da totalidade e constituindo esta totalidade. As partes que constituem um sistema têm um notável conjunto de características que se vêem no âmbito das partes, mas o sistema inteiro, o todo - o holos -, frequentemente possui uma característica que vai bem além que a mera soma das características de suas partes (propriedades emergentes). Por exemplo, sabemos que tanto o hidrogênio quanto o oxigênio são constituintes fundamentais no processo de combustão. Mas se juntamos esses elementos e formarmos a água, nós os usaremos para combater a combustão. O Todo não elimina as características das partes, mas estas, quando em relações íntimas, dão o substrato a uma nova forma, cujas características transcendem às das partes constituintes. São nas ciências relacionadas a vida (biologia, ecologia, psicologia, medicina, ...) onde melhor se pode demonstrar esta relação parte/todo em simbiose íntima.
Parte das mudanças de conceitos que devemos adotar incluem a mudança no conceito de ciência onde a ciência, antes estritamente objetiva, torna-se epistêmica (voltada para o próprio processo intelectual de conhecer), já que as teorias revelam mais sobre a mente que a concebe que propriamente da realidade. Toda teoria é um modelo de explicação aproximada da realidade. Parte-se das partes simples, consideradas independentes, para partes em interação, em processo ou em rede. Não é apenas o conjunto de elementos isolados que formam o universo de fenômenos estudado pela ciência, mas a interação, a relação que existe entre esses elementos.[i]
Segue no quadro a baixo as principais características do paradigma sistêmico ao lado das características do paradigma cartesiano. Devemos ainda reforçar o fato de que, até hoje, nenhuma concepção de ciência pode, sozinha, oferecer uma explicação exaustiva do mundo em que vivemos, cabe a nós, ao unir esses dois paradigmas, um novo esforço nessa tarefa.


Quadro 02. Preceitos Cartesianos e Preceitos Sistêmicos

 
Preceitos Cartesianos
Preceitos Sistêmicos
Evidência: a verdade é única e só existe se puder sei provada.
Pertinência: a percepção do objeto está diretamente relacionada á intenção do sujeito.
Reducionismo: divisão dos problemas nas menores, partes possíveis para proceder a sua resolução.
Globalismo: é consciente de que o objeto investigado faz parte de um todo maior, por isso a importância de compreender o funcionamento da parte em relação ao ambiente.
Causalista: institui-se uma hierarquia estrutural para resolução dos problemas. iniciando-se pelas partes mais simples e fáceis e ascendendo para as mais difíceis e complexas.
Teleológico: busca compreender o comportamento do objeto, sem o objetivo de explicá-lo em relação à estrutura física do objeto.
Exaustividade: retoma os três primeiros preceitos e faz uma última análise do objeto. considerando que nada mais existe para ser explorado.
Agregatividade: considera que toda representação é influenciada pela visão de mundo do observador. Por isso, muitos aspectos podem ser omitidos.




Compreender a natureza da vida a partir de um ponto de vista sistêmico ou holista significa identificar um conjunto de critérios gerais por cujo intermédio podemos fazer uma clara distinção entre sistemas vivos e não-vivos. Ao longo de toda a história da biologia, muitos critérios foram sugeridos, mas todos eles acabavam se revelando falhos e incompletos de uma maneira ou de outra. No entanto, as recentes formulações de modelos de auto-organização e a matemática da complexidade indicam que hoje é possível identificar tais critérios. Na atualidade podemos identificar três correntes de saber que se tornam, dia a dia, fundamentais para compreender os fenômenos da vida, apesar de guardar entre si uma diferença marcante, juntas elas podem nos revelar uma visão mais ampla dos fenômenos da vida. São esses três critérios: 1) autopoiese, uma nova concepção do padrão da vida, introduzido por Maturana e Varela, 2) estrutura dissipativa; uma nova concepção de estrutura da vida, introduzido por Prigogine; e 3) cognição, e uma nova concepção do processo da vida, introduzido no estudo da vida, por Baterson e mais tarde por Maturana e Varela.


[i] Brandão e Crema, 1992: 90
 
BRANDÃO, Dênis e CREMA. Roberto. O Novo Paradigma Holístico. São Paulo: Summus Editorial, 1992.
imagem: http://leonidafremov.deviantart.com/art/DEEP-IN-THE-WOODS-AFREMOV-184958375?q=&qo=