quinta-feira, 6 de maio de 2010

A historia da humanidade como a historia da libertação da mulher.


 

A decida das arvores e o inicio da caçada.[1]

A fêmea do macaco caçador é a responsável pela procriação na espécie e assim como acontece entre os primatas a responsável pela criação (alimentação e guarda). Originalmente, dentro do espaço da floresta no estado de coletor puro, essa criação era feita ao longo do processo de deslocamento pela floreta junto com os demais membros do bando. A fêmea tinha assim um status de liberdade e autonomia equivalente ao do macho.
A fêmea tinha seus próprios meios de conseguir comida, tinha liberdade de movimentação, e o poder de escolher os parceiros. Nos bandos de primatas era a quantidade de fêmeas que escolhiam o macho, que determinava qual dos machos seria o “macho alfa”, essa escolha era feita de acordo com critérios biológicos específicos relacionados a sobrevivência. A relação de fidelidade entre fêmeas e machos era inexistente nos moldes em que hoje compreendemos. Fêmeas trocavam de macho no momento em que encontravam um macho mais apto ou mais atrativo segundo os critérios e as necessidades do ambiente.
Descer das arvores, ou seja a mudança de coletor para caçador, representou um ponto mutação na historia da humanidade. A mudança de meio ambiente e meio de vida provocou uma mudança biológica e comportamental nos macacos caçadores.

Filhotes lerdos e cabeçudos.

Uma comparação em termos de biodesenvolvimento pode ser feita entre o macaco caçador e o chimpanzé. Ao nascer, o cérebro do chimpanzé tem 70% do seu tamanho final, atingindo 100% ao longo do primeiro ano enquanto os bebês humanos, ao nascerem, têm somente 23% da massa cerebral do adulto, não chegando a 100% do tamanho antes de 23 anos de vida[2], dez anos depois da maturidade sexual. Não só o cérebro sofreu um processo de infantilização, outras características também sofreram esse processo chamado de neotenia.
Embora a gestação do macaco caçador leve apenas poucos dias a mais comparada com a gestação de outros primatas. Parece que nascemos ainda como fetos, pois para atingir a mesma condição de outros primatas ao nascer, a gestação humana deveria durar cerca de um ano e meio. Como consequência de uma gestação relativamente mais rápida do que a dos outros mamíferos, ao nascer, os bebês humanos são muito mais frágeis e indefesos do que os filhotes de qualquer outro mamífero, incluindo os primatas. Para Stephen Jay Gould [3]a explicação desse encurtamento da gestação se refere ao tamanho do canal pélvico feminino para o qual o tamanho das cabeças dos bebês está quase no limite.
É claro que esse processo levou alguns milhões de anos e foi gradual. Então gradualmente os filhotes foram ficando cada vez mais frágeis e dependentes de suas mães, tornando a tarefa de criar esses filhotes cada vez mais complexa, demandando cada vez mais tempo e dedicação. Ao mesmo tempo a tarefa de conseguir comida, que antes era feita simplesmente se deslocando pela floresta e pegando o que estava à mão, foi transformada numa caçada que exigia planejamento, coordenação, cooperação e um grande esforço físico alem da dedicação de um grande período de tempo. Essas transformações graduais tornaram impossível conciliar a busca pela comida e os cuidados com a cria. A fêmea estava presa a sua cria impossibilitada de conseguir comida para si e para seu filhote.

O nascimento da fidelidade e o contrato social.

A fidelidade surge da dependência mutua entre os parceiros. Com a impossibilidade de a fêmea exercer as atividades de caça ela se torna completamente dependente, para alimentação e proteção, do macho. Mas a dependência do macho em relação a fêmea é mais sutil, ela esta relacionada a uma certa segurança genética. O processo é mais ou menos esse: a fêmea depende do macho para a alimentação e proteção, sua e do filhote, o macho, por sua vez, precisa que esse filhote seja bem cuidado para que ele sobreviva e seja forte. Existe mais um fator: O macho precisa confiar que esse filhote é realmente seu, porque ele vai despender muito tempo e esforço para alimentar esse filhote e essa fêmea. Nesse ponto as únicas garantias que existem são baseadas na confiança mutua, confiança de que o macho vai trazer comida para a fêmea e o filhote e confiança de que a fêmea não vai copular com outro macho enquanto ele estiver fora.
Também a dinâmica da busca pelo alimento muda, já não é mais possível conseguir alimento sozinho a caçada exige a cooperação de um grupo. Não meramente a presença do grupo mas a cooperação e coordenação desse grupo então o que nos temos é um pacto de cooperação que acaba por fundamentar uma sociedade. Todos os indivíduos de um grupo vivendo em um local cooperando entre si, as fêmeas cuidado dos filhotes e os machos alimentando e defendendo todo o grupo. A dependência mutua cria os laços sociais e a demanda dos interesses do outro passa a ser importante o leva ao desenvolvimento dos comportamentos éticos e as normas de convivência sociais.
Neste ponto nos temos um impasse, nenhuma das características observadas nas sociedade acima descrita é baseada num instinto original do primata, tudo isso teve de ser desenvolvido muito rapidamente, muito mais rapidamente que um desenvolvimento biológico pode se processar, então esse desenvolvimento só pôde ocorrer no nível cultural, que tem uma precedência mais baixa que o instinto no padrão de comportamento do macaco caçador. Então para reforçar esse padrão comportamental, não instintivo, mas necessário para sobrevivência da espécie nesse novo ambiente, desenvolveram-se reforços culturais como a religião, as leis e as instituições, para manter esse padrão social apesar da pressão exercida pelos instintos originais de coletor. Manter esse padrão foi essencial para a sobrevivência da espécie nesse ponto da evolução humana.
Assim temos uma incerteza conceitual: onde estaria o instinto do macaco caçador neste ponto da evolução? Até aqui temos comparado o instinto do macaco caçador com o dos primatas coletores típicos mas o processo de consolidação do comportamento na forma de instinto é continuo e evolui junto com os demais processos mas é difícil determinar como interagiram os novos comportamentos transmitidos culturalmente e os velhos instintos primatas frente a uma relação mutante   com o ambiente e quais deles se consolidaram como instintos do macaco caçador e quais deles permaneceram apenas no nível cultural[4].
No momento em que o macaco caçador fixa sua moradia num território determinado deixando de ser nômade e dando inicio a sociedade como a conhecemos hoje, a prisão da mulher chega ao seu auge e, portanto o inicio de seu declínio.

A tecnologia e a sociedade facilitando o trabalho.

A sociedade urbana hierarquizada de a mais ou menos 10.000 anos começou a resolver os problemas do macaco caçador. Queiramos ou não admitir nós vivemos de uma maneira muito melhor do que vivíamos a 10.000 anos, do ponto de vista biológico ou seja temos melhores condições de ampliar os números da espécie. Até esse momento toda a capacidade intelectual do macaco caçador estava voltada para suprir o equivalente a base da pirâmide de necessidades[5] de Abraham Maslow, ou seja, necessidades fisiológicas (básicas), tais como a fome, a sede, o sono, o sexo, a excreção, o abrigo[6]. Então com o desenvolvimento da sociedade resolver essas demandas se tornou cada vez mais simples.
A partir desse ponto com os problemas básicos “resolvidos” começam a surgir outras necessidades[7] oriundas principalmente do agrupamento e da especialização do trabalho. Especialização essa que proporciona uma melhor distribuição da mão de obra do grupo, possibilitando uma maior liberdade para a fêmea do macaco caçador. Vários desenvolvimentos tecnológicos contribuíram para essa maior liberdade. O principal desenvolvimento tecnológico que resolve um grande problema do macaco caçador é a agricultura intensiva, isso reduz significativamente a necessidade de caça propriamente dita, mas não sua eliminação, colocando o macho mais presente dentro do agrupamento o que proporciona um desenvolvimento cultural ainda maior.
Essa progressão tecnológica e social segue seu desenvolvimento de forma cada vez mais acelerada ao longo da historia proporcionando um apoio social na criação do dos filhotes o que da uma liberdade para a fêmea cada vez maior.

A virada da maré e a pílula.

As implicações dessa libertação inicialmente tiveram reflexo no que poderíamos chamar de subjetividade feminina, um olhar de si mesma e o surgimento da fêmea como figura, como ícone, como por exemplo no Egito antigo. Um ponto bastante interessante de se notar é o processo que ocorreu no império romano onde a figura da mulher ganha importância dentro da sociedade e mesmo um poder, velado mas ainda sim um poder.
Porem com a queda do império e um retrocesso nos processo de expansão urbana e uma redução do apoio social a liberdade feminina sofre um revés. Ao longo da idade média o processo urbano foi retomado e a mulher começou a ganhar um papel social mais forte neste momento, no auge da idade media, e portanto no seu final, surge o amor. Culturalmente nos poderíamos considerar o surgimento do amor como uma equiparação entre homens e mulheres, neste momento os sentimentos femininos começam a importar, mesmo estando submetidos aos moldes culturais de fidelidade surgidos na pré-história, apesar de a pressão da criação dos filhos ter se reduzido extremamente.
Em meados do século 20, após várias conquistas nos campos político, artístico e social, surge o ponto de virada para a liberdade feminina, o desenvolvimento de um método contraceptivo eficiente. Esse método deu o poder de decisão de quando procriar, isso aliado a um sistema social que da total suporte na criação dos filhotes, sendo possível a uma mulher ter filhos e não se envolver em sua criação, isso não somente nas classes sociais mais elevadas mas em todas as classes, restaurou as mulheres a liberdade perdida.

De volta para a floresta e a liberdade reconquistada.

Observando esse processo desde o surgimento da civilização até hoje e comparando com o tempo decorrido desde que o macaco caçador desceu das arvores vemos que o processo civilizatório é uma coisa recente, mas em nosso entendimento ele é na verdade um retorno ao estado de coletor. Houve um retorno a coleta ao invés de uma generalização da caçada. Os processos de obtenção de alimento e a dinâmica social hoje são muito semelhantes aos da floresta. Com a especialização do trabalho a linha que liga o trabalho a alimentação se torna muito extensa de forma que hoje ela não pode se percebida como uma linha direta, o trabalho é muito mais do que apenas obtenção de comida. A alimentação muito semelhante a simples coleta do alimento.
Podemos dizer que alimentação não é um fator determinante em nossa vida hoje mas, fatores como alimentação e procriação despertam nossos instintos mais ancestrais e com esse retorno a um estado muito semelhante ao estado original na floresta provoca profundas alterações no comportamento dos indivíduos suscitando um retorno na media do possível aos velhos hábitos. As mulheres não estão em absoluto prezas a criação dos filhotes nem necessitam do apoio dos machos para tal, demonstram isso os crescentes números de mães solteiras e as mulheres que optam por não se casar e manter uma flutuação de parceiros, ou ainda a maneira como os casamentos têm uma vida bastante curta com a fêmea trocando de parceiro assim que encontra um “melhor” do que o que tem. Não que os machos já não o fizessem mas agora as fêmeas voltaram a ter a liberdade de faze-lo. A mulher retorna assim para um estado onde tem iguais condições, está livre.
As profundas modificações sociais ocorrendo hoje são fruto das alterações da dinâmica da própria sociedade decorrente da interação entre a espécie e o meio em que vive. Essas mudanças não podem ser encaradas como boas ou más, em si, elas devem sim ser compreendidas, na medida em que são o resultado do desenvolvimento da espécie.


[1]De certa forma essa é uma continuação do artigo anterior, então, alguma informação extra pode ser obtida no mesmo.
[2]           MORRIS, Desmond. O macaco nu: um estudo do animal humano. Trad: Hermano Neves. 8ª Ed. – Rio de Janeiro. Record.  pg 26.
[3] GOULD, Stephen J. Darwin e os grandes enigmas da vida. São Paulo : Martins Fontes, 1987.
[4]           Já nos referimos a esse assunto num artigo anterior chamado “instinto”.
[5]           Existem muitas criticas a pirâmide de necessidades de Maslow principalmente com relação a hierarquização das necessidades. Neste estudo usamos a pirâmide de  Maslow num sentido temporal ou seja num período pré-histórico a plena realização do homem se dava ao suprir as necessidades mais básicas da pirâmide e com o passar do tempo mais necessidades foram sendo acrescentadas porem sem que houvesse uma hierarquia entre elas. O que a pirâmide de  Maslow representa é as necessidades do homem hoje.
[6]           Maslow, A. H. (1954). Motivation and personality. New York: Harper.
[7]           Necessidades de segurança, que vão da simples necessidade de sentir-se seguro dentro de uma casa a formas mais elaboradas de segurança como um emprego estável, um plano de saúde ou um seguro de vida.