terça-feira, 14 de julho de 2009

Deus, Sonho ou Delírio?



Acabei de assistir dois documentários com Richard Dawkins, o cara do “O Gene Egoísta”, o rottweiler de Darwin. Os documentários são “The Root of All Evil” e “The Enemies of Reason”. Esses documentários demonstram como a religião e as diversas manifestações da superstição e da irracionalidade são fonte de grande parte dos males existentes em nossa civilização. É uma visão radical com certeza, mas não quer dizer que seja uma visão equivocada. Esses documentários são baseados em seu livro “Deus, um Delírio” laçado em 2006.
Nas páginas 212 e 213 de seu livro, Dawkins resume o que ele chama de “o argumento central de meu livro.” Assim segue:
1. Um dos maiores desafios para o intelecto humano foi explicar como o complexo e improvável aparecimento do design surgiu no universo.
2. A tentação natural é atribuir o aparecimento do design a um design verdadeiro.
3. A tentação é uma falsidade porque a hipótese do projetista remete imediatamente ao problema maior de quem projetou o projetista.
4. A explicação mais engenhosa e poderosa é evolução de Darwin através de seleção natural.
5. Nós não temos uma explicação equivalente para a física.
6. Nós não deveríamos renunciar a esperança de uma explicação melhor que surja na física, algo tão poderoso quanto o Darwinismo é para biologia.
Historicamente violências extremas têm sido perpetradas em nome da religião e de forma alguma essa violência deixa de encontrar um modelo na religião tradicional e esse modelo é o próprio Deus. “O Deus do Antigo Testamento é sem dúvida o personagem mais desagradável de toda ficção. Ciumento e orgulhoso; mesquinho, injusto, maníaco controlador implacável, vingativo, sedento de sangue, misógino, homofóbico, racista, infanticida, genocida, filicida, pestilento, megalomaníaco…”[1] e esse tem, aparentemente, sido o legado de Deus aos homens. Porque como ele mesmo disse “façamos homem a nossa imagem e semelhança”.
Bom. Esse é o Richard Dawkins, ele não é conhecido por sua flexibilidade e sua visão ampla do mundo. Errado ele não está, mas sem um “mas” não haveria motivo para eu fazer um texto. A idéia, que Dawkins defende apaixonadamente, de que devemos abandonar radicalmente Deus e toda e qualquer forma de superstição é uma idéia bastante óbvia se encararmos a coisa de um ponto de vista meramente social ou cientifico, ou seja, concreto. Contudo esses não são os únicos aspectos a serem analisados quando temos em pauta qualquer assunto relacionado aos seres humanos. Seres humanos acreditam ou deixam de acreditar por algum motivo.
Ao nascer o ser humano é um animal incompleto (para o futuro esperem um texto sobre neotenia) principalmente seu cérebro se encontra num estagio primário de formação, praticamente apenas 25% formando. Então no desenvolvimento do pensamento, que ocorre concomitantemente ao desenvolvimento do próprio cérebro, o ser humano, segundo Piaget[2], passa por quatro estágios:
· 1º período: Sensório-motor (0 a 2 anos)
· 2º período: Pré-operatório (2 a 7 anos)
· 3º período: Operações concretas (7 a 11 ou 12 anos)
· 4º período: Operações formais (11 ou 12 anos em diante)
O segundo estágio é particularmente interessante ao nosso estudo e vamos caracterizá-lo melhor. É nesta fase que surge a capacidade de substituir um objeto ou acontecimento por uma representação. Esta substituição é possível, conforme Piaget, graças à função simbólica. Neste estágio a criança já não depende unicamente de suas sensações, de seus movimentos, mas já distingue um significador (imagem, palavra ou símbolo) daquilo que ele significa (o objeto ausente). Assim este estágio é também conhecido como o estágio da Inteligência Simbólica.
A criança deste estágio é egocêntrica, centrada em si mesma, e não consegue se colocar, abstratamente, no lugar do outro, não aceita a idéia do acaso e tudo deve ter uma explicação, já pode agir por simulação, possui percepção global sem discriminar detalhes e deixa-se levar pela aparência sem relacionar fatos. Podemos dizer que a criança e egocêntrica da sua maneira, ou seja, implica a ausência da necessidade, por parte da criança, de explicar aquilo que diz, por ter certeza de estar sendo compreendida. Da mesma forma, o egocentrismo é responsável por um pensamento pré-lógico, pré-causal, mágico, animista e artificialista. O raciocínio infantil não é nem dedutivo nem indutivo, mas transdutivo, indo do particular ao particular; o juízo não é lógico por ser centrado no sujeito, em suas experiências passadas e nas relações subjetivas que ele estabelece em função das mesmas. Os desejos, as motivações e todas as características conscientes, morais e afetivas são atribuídas às coisas (animismo). A criança pensa, por exemplo, que o cão late porque está com saudades da mãe. Por outro lado, para as crianças até os sete anos de idade, os processos psicológicos internos têm realidade física: ela acha que os pensamentos estão na boca ou os sonhos estão no quarto. Dessa confusão entre o real e o irreal surge a explicação artificialista, segundo a qual, se as coisas existem é porque alguém as criou.
A psicologia evolutiva e a embriologia demonstram um paralelo entre a evolução do indivíduo e a evolução da espécie. E coloca o estágio Pré-operatório da espécie no período de 200 mil A.C. - 600 A.C. Esse foi o período onde ocorreu a maior intensidade de crenças religiosas, Panteístas ou Politeístas e também o surgimento das bases de todas as grandes religiões predominantes nos dias de hoje. Nunca se tomou conhecimento de que tenha havido algum grupamento humano que não tivesse sua religião. Esse foi também o período de desenvolvimento científico mais lento da história, principalmente em relação ao tempo que durou. Não acredito que alguém discorde disto sem apelar para lendas do tipo Atlântida ou Lemúria. Desse modo notamos a prevalência do Pensamento Mágico no homem primitivo, tal como uma espécie de pensamento pré-lógico, onde as fronteiras entre o real e o irreal são demasiadamente imprecisas. Tal Pensamento Mágico está ainda bastante presente em adultos carentes de um socorro imediato às suas angústias e impotências. Está bem sabido que esta não é a maneira habitual de pensar e de proceder do homem adulto contemporâneo. Este ser deveria pautar sua conduta pelos princípios que regem o Pensamento Lógico ou Pensamento Reflexivo.
Segundo Piaget, “reflexão é como um pensamento de segundo grau que implica na representação de uma representação de ações possíveis.”, ou seja, deduzir de modo operatório a partir de simples hipóteses, que são enunciadas verbalmente (lógica das proposições). Desse modo, a forma adotada pelas estruturas operatórias consiste em dissociar-se de seu conteúdo, daí, a possibilidade de raciocínio hipotético-dedutivo ou formal. As operações formais fornecem ao pensamento do ser humano o poder de destacá-lo e libertá-lo do real, ao permitir-lhe construir, a seu modo, as reflexões e teorias e possibilitar-lhe a livre atividade da reflexão espontânea.
Entretanto cada ser humano carrega em si reminiscências residuais primitivas que voltam a eclodir ante a ocorrência de situações traumáticas e estressantes, tais como, ansiedade, paixão, incerteza, sofrimento inconsolável, perigo iminente e insanidade. Dessa forma o ser humano será capaz de apelar para o sobrenatural e para a fantasia para aplacar a angústia e o desespero fazendo uso de mecanismos de defesa mantidos em estado de latência, mas susceptíveis de reascenderem todas as vezes que ocorrer uma ruptura no equilíbrio funcional da personalidade. É desta forma que surpreendemos o irreal e ilógico no conteúdo e nas formulações do pensamento. Tais atitudes mentais são consideradas uma espécie de regressão da personalidade, onde vemos surgir toda uma simbologia ancestral dos estágios mais remotos da evolução psicológica da espécie humana.
Quando se perde a capacidade de discernir a distinção entre fantasia e realidade estamos diante das patologias do pensamento classificadas como: pensamento supervalorizado, delirante, obsessivo ou fóbico. Jaspers[3] define o Delírio com sendo um juízo patologicamente falseado e que deve, obrigatoriamente, apresentar três características:
1. Uma convicção subjetivamente irremovível e uma crença absolutamente inabalável com impossibilidade de sujeitar-se às influências de correções quaisquer, seja através da experiência ou da argumentação lógica;
2. Um pensamento de conteúdo Impenetrável e incompreensível psicologicamente para o indivíduo normal;
3. Uma representação vivencial sem conteúdo de realidade que não se reduz à análise dos acontecimentos vivenciais.
Como é possível, e até normal, admitir a existência de Idéias Delirantes quando um lavrador comum declara que se transformou no chefe da rede de espionagem de uma grande potência, por meio da hipnose dos espíritos, mas não desconfiarmos de delírio quando alguém, muito religioso, se julga convocado por uma voz divina dentro de sua cabeça a ajudar os pobres ou matar todos os infiéis ou que permanecendo de joelhos ao dizer certas palavras alguns acontecimentos podem se realizar ou deixar de se realizar. Todos nós tendemos a desenvolver ficções reconfortantes úteis para proporcionar apoio e segurança à personalidade. Aparentemente, a psique humana sempre desenvolveu ou adotou crenças bem elaboradas num esforço para satisfazer necessidades íntimas. A construção de crenças fantasiosas confortadoras como proteção contra a ansiedade e a insegurança, tem ocorrência universal. Este é o propósito oculto dos nossos contos de fadas, das narrações épicas de pessoas poderosas, das mitologias antigas e modernas e ainda das novas crenças em alienígenas, seres não humanos e não divinos com poderes alem da imaginação. O que caracteriza fundamentalmente o delírio é o seu aspecto irredutível, característica essa muito próxima ao que encontramos nas religiões nominado de Fé. O delirante não se deixa influenciar nem pela experiência, nem por argumentações lógicas e esse é, acima de tudo, o ideal do homem de Fé, nunca se deixar abalar pelo que quer que seja. A Idéia Delirante, ou Delírio, espelha uma verdadeira mutação na relação eu-mundo e se acompanha de uma mudança nas convicções e na significação da realidade que coloca a pessoa num estreitíssimo corredor de possibilidades, numa quase ausência de livre arbítrio.
Contudo não é possível dizer que é normal e até desejável que a pessoa tenha seus pensamentos exclusivamente atrelados ao concreto e ao real, isso seria mais uma limitação imposta ao pensamento, fazendo-o incapaz de afastar-se do absolutamente concreto e leva o nome de Concretismo, que também é uma alteração da forma do pensamento. Trata-se de uma modalidade especial de alteração da forma do pensamento, que consiste na incapacidade do indivíduo para fazer a distinção entre o simbólico e o concreto. Ou seja, ele sempre se refere à sensação e se opõe à abstração. Falta ao concreto a independência da realidade para abstrair-se, pois o concreto está sempre escravizado pelo fenômeno material e o objeto do pensar é sempre o mesmo objeto da percepção. Portanto, o conceito de concreto exprime sempre um objeto particular determinado e sensorialmente percebido.
Assim achegamos a que, normal é a capacidade do pensamento, de lidar com a fantasia e lidar com o concreto, de maneira livre e autônoma. O ser humano normal deve ter autonomia e capacidade de passar voluntariamente de uma forma à outra e, principalmente, deve saber claramente onde começa um tipo de pensamento e termina o outro.
“Há apenas dois mundos - o seu mundo, que é o mundo real, e outros mundos, a fantasia. Mundos como este último são mundos da imaginação humana: a realidade, ou a falta dela, não é importante. O importante é que eles estão lá. Esses mundos proporcionam uma alternativa. Proporcionam uma fuga. Proporcionam uma ameaça. Proporcionam sonhos e força. Proporcionam refúgio e dor. Eles dão significado ao seu mundo. Eles não existem, então são tudo o que importa. Você entende?”[4]
“Nós precisamos de deuses - Tor, Zeus, Krishna, Jesus ou, bem, Deus nem tanto para adorá-los ou nos sacrificarmos por eles, mas porque eles satisfazem nossa necessidade — diferente daquela de todos os outros animais - de imaginar um significado, um sentido para nossas vidas, para satisfazer nossa ânsia por acreditar que a confusão e o caos da existência cotidiana, afinal, realmente levam a algum lugar. E a origem da religião e também da arte de contar histórias - ou não são elas a mesma coisa? Como disse Voltaire a respeito de Deus: se ele não existisse, seria preciso inventá-lo.” Frank McConnel[5]
Existe uma maneira saudável de lidar com nossas necessidades de significado e conforto. Adotar o caminho da filosofia talvez seja uma forma de adquirir significado, mas com certeza filosofia não traz conforto. A ficção é um bom caminho que traz muito significado e algum conforto e satisfaz, pelo menos para algumas pessoas, a grande necessidade de fazer parte de algo. Religião, a meu ver, não é um caminho saudável. Resolver nossos problemas com base em idéias que não detém corroboração nem prova é normal ante a falta de opção, mas manter-se nessa idéia mesmo em confronto com as evidências em contrario é patológico e não é por um comportamento ser adotado pela maioria que ele possa ser considerado saudável. A religião e a arte de criar estórias têm a mesma origem e como todos os personagens do mundo da fantasia e dos sonhos os deuses vivem no sonhar.

[1] DAWKINS, R. Deus, um Delírio. Companhia das Letras, 2006.
[2] PIAGET, J. A psicologia da criança. Ed Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
[3] JASPERS, K. - Psicopatologia General. Buenos Aires: Editorial Beta, 1963.
[4] GAIMAN, N. Os Livros da Magia. DC Comics. 2004.
[5] GAIMAN, N. & KRAMER, E. Sandman: O Livro Dos Sonhos vol.1. São Paulo: Conrad, 2004.

sábado, 4 de julho de 2009

O macaco pelado

Polegares opositores, um grande cérebro, a capacidade de criar símbolos. Essas são as características mais marcantes do Homo sapiens? Ou seria sua, imerecida e pretensiosa, suposta sapiência [1] a característica que torna o homem único? Bem poderíamos afirmar que são todas essas grandes e pretensiosas qualidades que tornam o homem único e inestimável para a “mãe natureza”.


Mas olhemos isso mais de perto. Os chipanzés têm polegares opositores, é um simples detalhe que faz com que suas palmas sejam longas e eles não possam fazer o tão aclamado movimento de pinça. Os ursos panda também têm polegares opositores especialmente para segurar bambu, é claro, afinal é a única coisa que eles sabem fazer. Então polegares opositores não são lá uma grande novidade na natureza, nem uma aberração inexplicável sem uma utilidade que seja inerente ao ser humano.

Definitivamente o do elefante é maior. No que diz respeito ao cérebro e a outras dimensões corporais nós não somos campeões em nada, mesmo dentro de nossa categoria, ou seja, os primatas, se levarmos em consideração a dimensão corporal o cérebro do chipanzé e principalmente dos bonobos perde por pouco.

Essa é boa, eu ouvi de um professor de filosofia: Capacidade de criar símbolos. Primeiro não há como afirmar que os humanos são os únicos a fazer isso, não há evidencias a esse respeito, mas como dizia meu grande amigo Carl Sagan “A ausência de evidência não significa evidência de ausência." [2]. Segundo, essa característica pode ser apenas uma propriedade emergente de um sistema cognitivo e não ter nada a ver com os seres humanos em especial.

Quanto a sapiência, não vou nem falar nada... A maneira como tem lidado com o mundo e uns com os outros já demonstra quanta sabedoria os humanos têm.

Existe, no entanto, uma característica bastante peculiar no ser humano que o destaca de todos os outros animais, não é uma característica pomposa como a capacidade de criar símbolos nem versátil como o movimento de pinça, nem tão evolutivamente significativa como um cérebro proporcionalmente grande. Contudo é uma característica bastante visível e por outro lado pouco notada. Caberia até perguntar: vocês já notaram que os humanos não têm pêlos? Isso mesmo pêlos, mais precisamente uma pilosidade densa cobrindo todo o corpo, como todos os outros animais têm. Ah é claro, nem todos, mas é interessante analisar essas exceções, elas são significativas.

Abandonar os pêlos é uma medida drástica e só foi adotada por mamíferos que mudaram radicalmente seu modo de vida. “Os morcegos foram obrigados a perder o pêlo das asas, mas conservam-nos no resto do corpo, de modo que não podem ser considerados uma espécie pelada. Alguns mamíferos escavadores — como a toupeira pe­lada, o oricterope sul-africano e o tatu sul-americano, por exemplo — reduziram o respectivo revestimento piloso. Os mamíferos aquá­ticos, como as baleias, golfinhos, porcos-marinhos, peixes-boi, dugon-gos e hipopótamos, também se tornaram pelados para viver na água. Mas o revestimento piloso continua a ser regra entre os mamíferos tí­picos, que vivem na superfície, quer corram pelo chão, quer trepem pelas árvores. Salvo os gigantes anormalmente pesados, como os ri­nocerontes e elefantes (com problemas de alimentação e arrefeci­mento muito particulares), o macaco pelado é o único que não tem pêlos, entre todos os milhares das espécies mamíferas terrestres, que são hirsutas, peludas ou feupudas.” [3]

Daí ou nós somos uma espécie subterrânea, ou somos aquáticos. Dado o recente gosto dos humanos por viver em tocas cada vez mais profundas e sua fuga constante do sol e do céu eu apostaria na primeira opção, mas isso é só uma aposta minha.

A grande questão sobre os humanos é que ninguém sabe para o que serve um ser humano. Este artigo foi feito num tom, digamos, leve, mas expressa uma questão bastante profunda de tentar encontrar o que vem a ser um ser humano e quais são suas principais características, pelo menos no que toca a biologia, que pode ser e será sua parte mais palpável. Mas se nosso intelecto nos permitir, iremos além disso, em busca da humanidade.

Cássio Silveira Gomides 12/08/2008



[1] TOYNBEE, Arnold. A humanidade e a mãe terra: uma historia narrativa do mundo. Trad: Helena Maria Camacho Martins Pereira e Alzira Soares da Rocha. 2 ª Ed. – Rio de janeiro. Guanabara. 1987. (pg. 42)

[2] SAGAN, Carl. Mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. Trad: Rosaura Eichemberg – São Paulo: companhia das letras. 1996.

[3] MORRIS, Desmond. O macaco nu: um estudo do animal humano. Trad: Hermano Neves. 8ª Ed. – Rio de Janeiro. Record. (pg – 13-14).