terça-feira, 17 de maio de 2011

“O QUE É VIDA?”: UM RETORNO AO ESTUDO DO SER VIVO - Autopoiese: o padrão da vida - parte 1

  
Nessa parte de nosso estudo enfatizaremos o padrão, já que é o padrão que determina se um organismo é vivo ou não-vivo[i], sem, contudo, nos esquecermos da forma, e muito menos de que a vida é também um processo. Entendemos padrão como uma determinada organização que se repete dentro de um universo de seres estudados. Identificamos o “padrão de rede” como o padrão fundamental dos sistemas vivos, pois, ao observarmos a natureza, percebemos que o “padrão de rede” está presente em toda parte, por exemplo, nas teias alimentares, no modo como os organismos, partes de organismos ou comunidades de organismos se arranjam e interagem entre si.
Quando pensamos em rede no que estamos pensando? Não-linearidade é a primeira característica, e a principal, que podemos notar quando examinamos uma rede. Por exemplo, quando examinamos uma teia alimentar (figura 01): O que ocorre com um animal morto? Parte dele é comida por carniceiros, parte é decomposta no solo por bactérias; os carniceiros por sua vez eliminam os resíduos da digestão que também sevem de alimento a outros animais e a bactérias; as bactérias por sua vez adubam o solo para o crescimento de vegetação, que serve de alimento para outros animais que também morrerão por sua vez. O que percebemos com isso? De um determinado evento não se seguem eventos apenas numa única direção, mas sim em várias direções que ocasionalmente pode se encontrar, configurando assim um laço de realimentação. (figura 02).

Figura 01


                                                  Teia alimentar

  Figura 02

                               Laço fechado de realimentação
Realimentação é outra característica que eventualmente pode ocorrer em uma rede, mas é fundamental nas redes formadas e formadoras de sistemas vivos. O conceito de realimentação foi introduzido pelos ciberneticistas Norbert Wiener, Julian Bigelow e Arturo Rosenblueth em 1943. Ela ocorre quando numa determinada seqüência de eventos, um evento começa a influenciar em sua causa. Nas palavras de Fritjof Capra:
Um laço de realimentação é um arranjo circular de elementos ligados por vínculos causais, no qual uma causa inicial se propaga ao redor das articulações do laço, de modo que cada elemento tenha um efeito sobre o seguinte, até que o último “realimenta” (feeds back) o efeito sobre o primeiro elemento do ciclo. A conseqüência desse arranjo é que a primeira articulação ("entrada") é afetada pela última ("saída"), o que resulta na auto-regulação de todo o sistema, uma vez que o efeito inicial é modificado cada vez que viaja ao redor do ciclo.[ii]
Retornando ao exemplo da teia alimentar, a adubação do solo, proporcionada pelas bactérias, propicia o crescimento de vegetais, que por sua vez produzem oxigênio e servem de alimento direto aos animais, que ao morrer servem de alimento as bactérias. Mostrando, como disse Wiener, o “controle de uma máquina com base em seu desempenho efetivo, e não com base em seu desempenho previsto”.[iii] Assim, as bactérias, de certa maneira, proporcionam e regulam não só a vida das bactérias, mas também de todo o sistema e o mesmo poderíamos dizer dos outros elementos da rede.
Um fator interessante sobre os laços fechados de realimentação (ou hiperciclos) é a sua capacidade de evolução. Partido de uma relação causal interativa em um hiperciclo temos que: a interferência de um elemento externo ao laço causa uma instabilidade que obriga o hiperciclo a entrar em equilíbrio novamente, ou seja, absorver a interferência e lidar com ela, a partir desse ponto, como fazendo parte do laço “e criando níveis de organização sucessivamente mais elevados”[iv]. Vemos com isso a capacidade do hiperciclo de se adaptar ao meio, recebendo e resolvendo as interferências. Na natureza encontramos os hiperciclos em sistemas de reações especiais, que foram estudados por Manfred Eigen, e que foram chamados “ciclos catalíticos”. Quando Eigen estudava reações catalíticas envolvendo enzimas, em 1960, percebeu a presença de redes complexas, em sistemas afastados do equilíbrio, que podiam conter laços fechados de realimentação. “Esses ciclos catalíticos estão no cerne de sistemas químicos auto-organizadores[...] e também desempenham um papel essencial nas funções metabólicas dos organismos vivos.”[v].
O conceito de hiperciclo é uma das concepções-chave pra entender a auto-organização. Porém, hesita-se de chamar um hiperciclo de “vivo”. Então, o que caracteriza um organismo vivo? Autopoiese. Conceito introduzido, segundo Capra,[vi] a partir de 1970 por Humberto Maturana e Francisco Varela, dois neurocientistas chilenos. Para eles esse conceito é “necessário e suficiente para caracterizar a organização dos sistemas vivos”.


[i] Capra, 2002: 135
[ii] Capra, 2002: 59
[iii] Wiener, apud Capra, 2002: 59
[iv] Capra, 2002: 86
[v] Capra, 2002: 85
[vi] Capra, 2002



CAPRA, Fritjof. A Teia Da Vida. 7ª ed. Tradução: Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2002.
imagem: http://leonidafremov.deviantart.com/art/AUTUMN-FOG-L-AFREMOV-189429686

terça-feira, 9 de novembro de 2010

“O QUE É VIDA?”: UM RETORNO AO ESTUDO DO SER VIVO - A natureza da Vida - parte 4

Na atualidade começam a surgir novas correntes de pensamento que se contrapõe ao pensamento mecanicista por considerá-lo inadequado para descrever diversos fenômenos naturais, devido a impossibilidade de se reduzir os fenômenos relacionados com vida a leis matemáticas simples. Uma dessas correntes de pensamento é o chamado pensamento holista ou sistêmico ou ainda organicista, que consiste numa tentativa de perceber os fenômenos como um todo inseparável, um modelo científico que se baseia no conceito de relação, que é muito mais amplo que o de análise, como o usado pela ciência clássica. Já não são somente as partes constituintes de um corpo ou de um objeto que são de fundamental importância para a compreensão da natureza desse objeto, mas o modo como se expressa todo esse objeto, e como ele se insere em seu meio. O holismo não significa a soma das partes, mas a captação da totalidade orgânica, una e diversa em suas partes, mas sempre articuladas entre si dentro da totalidade e constituindo esta totalidade. As partes que constituem um sistema têm um notável conjunto de características que se vêem no âmbito das partes, mas o sistema inteiro, o todo - o holos -, frequentemente possui uma característica que vai bem além que a mera soma das características de suas partes (propriedades emergentes). Por exemplo, sabemos que tanto o hidrogênio quanto o oxigênio são constituintes fundamentais no processo de combustão. Mas se juntamos esses elementos e formarmos a água, nós os usaremos para combater a combustão. O Todo não elimina as características das partes, mas estas, quando em relações íntimas, dão o substrato a uma nova forma, cujas características transcendem às das partes constituintes. São nas ciências relacionadas a vida (biologia, ecologia, psicologia, medicina, ...) onde melhor se pode demonstrar esta relação parte/todo em simbiose íntima.
Parte das mudanças de conceitos que devemos adotar incluem a mudança no conceito de ciência onde a ciência, antes estritamente objetiva, torna-se epistêmica (voltada para o próprio processo intelectual de conhecer), já que as teorias revelam mais sobre a mente que a concebe que propriamente da realidade. Toda teoria é um modelo de explicação aproximada da realidade. Parte-se das partes simples, consideradas independentes, para partes em interação, em processo ou em rede. Não é apenas o conjunto de elementos isolados que formam o universo de fenômenos estudado pela ciência, mas a interação, a relação que existe entre esses elementos.[i]
Segue no quadro a baixo as principais características do paradigma sistêmico ao lado das características do paradigma cartesiano. Devemos ainda reforçar o fato de que, até hoje, nenhuma concepção de ciência pode, sozinha, oferecer uma explicação exaustiva do mundo em que vivemos, cabe a nós, ao unir esses dois paradigmas, um novo esforço nessa tarefa.


Quadro 02. Preceitos Cartesianos e Preceitos Sistêmicos

 
Preceitos Cartesianos
Preceitos Sistêmicos
Evidência: a verdade é única e só existe se puder sei provada.
Pertinência: a percepção do objeto está diretamente relacionada á intenção do sujeito.
Reducionismo: divisão dos problemas nas menores, partes possíveis para proceder a sua resolução.
Globalismo: é consciente de que o objeto investigado faz parte de um todo maior, por isso a importância de compreender o funcionamento da parte em relação ao ambiente.
Causalista: institui-se uma hierarquia estrutural para resolução dos problemas. iniciando-se pelas partes mais simples e fáceis e ascendendo para as mais difíceis e complexas.
Teleológico: busca compreender o comportamento do objeto, sem o objetivo de explicá-lo em relação à estrutura física do objeto.
Exaustividade: retoma os três primeiros preceitos e faz uma última análise do objeto. considerando que nada mais existe para ser explorado.
Agregatividade: considera que toda representação é influenciada pela visão de mundo do observador. Por isso, muitos aspectos podem ser omitidos.




Compreender a natureza da vida a partir de um ponto de vista sistêmico ou holista significa identificar um conjunto de critérios gerais por cujo intermédio podemos fazer uma clara distinção entre sistemas vivos e não-vivos. Ao longo de toda a história da biologia, muitos critérios foram sugeridos, mas todos eles acabavam se revelando falhos e incompletos de uma maneira ou de outra. No entanto, as recentes formulações de modelos de auto-organização e a matemática da complexidade indicam que hoje é possível identificar tais critérios. Na atualidade podemos identificar três correntes de saber que se tornam, dia a dia, fundamentais para compreender os fenômenos da vida, apesar de guardar entre si uma diferença marcante, juntas elas podem nos revelar uma visão mais ampla dos fenômenos da vida. São esses três critérios: 1) autopoiese, uma nova concepção do padrão da vida, introduzido por Maturana e Varela, 2) estrutura dissipativa; uma nova concepção de estrutura da vida, introduzido por Prigogine; e 3) cognição, e uma nova concepção do processo da vida, introduzido no estudo da vida, por Baterson e mais tarde por Maturana e Varela.


[i] Brandão e Crema, 1992: 90
 
BRANDÃO, Dênis e CREMA. Roberto. O Novo Paradigma Holístico. São Paulo: Summus Editorial, 1992.
imagem: http://leonidafremov.deviantart.com/art/DEEP-IN-THE-WOODS-AFREMOV-184958375?q=&qo=

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

“O QUE É VIDA?”: UM RETORNO AO ESTUDO DO SER VIVO - A natureza da Vida - parte 3

O estudo dos seres vivos tem sido negligenciado em detrimento do estudo das forças físicas devido ao triunfo do pensamento newtoniano/cartesiano que conseguiu, com seu método rígido e quantitativo, uma descrição bastante precisa dos fenômenos do universo macroscópico; porém, essa descrição não foi satisfatória, porque, ao escopo da teoria mecanicista escapa o que, segundo Prigogine:
[...] foi, sem dúvida, uma das mais antigas fontes de inspiração da física, o espetáculo do desenvolvimento progressivo, da diferenciação e da organização aparentemente espontâneas do embrião. Forma-se a carne, o bico, os olhos, os intestinos; sim, há de fato organização progressiva de um espaço propriamente biológico, aparecimento a partir de um meio homogéneo, de uma massa que parece insensível, de formas diferenciadas, precisamente no momento e no lugar oportunos, num processo coordenado e harmonioso. [i]
Os estudiosos das substâncias medem e pesam os organismos sem se atentar para o fato de que, ao reduzirem os organismos a moléculas e átomos, ou seja “quantidades”, estão ignorando as relações entre as diversas partes do organismo e as relações entre os organismos, estão deixando de fora dos seus microscópios e espectrógrafos as “qualidades” desses organismos, que são exatamente o que diferem um amontoado de moléculas e átomos inanimados de um organismo vivo.
A partir de agora, para que possamos entender a essência dos sistemas vivos, seja a partir da biofísica, da bioquímica ou outra ciência interessada no estudo dos fenômenos relacionados a vida, teremos que abandonar a crença reducionista de que quando descrevemos organismos complexos como se fossem máquinas, ou seja, em função das propriedades e do comportamento de seus elementos constituintes, estamos dando uma explicação exaustiva desses organismos.
Essa abordagem, biológico, genético e molecular, teve sua importância ao nos oferecer uma lista completa dos elementos físicos envolvidos nos sistemas vivos. Agora que a listagem está completa devemos voltar nossos esforços para os problemas deixados para traz sem solução, como por exemplo, os da diferenciação e desenvolvimento celular, ou os da regeneração. Sidney Brenner nos indica sutilmente o caminho através da concepção sistêmica da vida:
Penso que nos próximos 25 anos vamos ter de ensinar aos biólogos uma outra linguagem. (...) ainda não sei como ela se chama; ninguém sabe. Mas o que se almeja, penso eu, é resolver o problema fundamental da teoria de sistemas elaborados. (...) e ai nos deparamos com um grave problema de níveis: talvez seja um erro acreditar que toda a lógica está no nível molecular. Talvez seja preciso ir além dos mecanismos de relógio.[ii]
Cada uma das fases do pensamento científico foi bem sucedida em determinados períodos de tempo. Dando novas perspectivas para a compreensão da realidade física, condicionavam a atitude científica e estabeleciam quais seriam os critérios de pesquisa, freqüentemente ligados à maneira como se esperava que o mundo devesse funcionar de acordo com o modelo (paradigma) adotado. Deste modo, fica claro que a ciência não é um processo de descoberta, em sentido estrito, de uma realidade dada, porém parece ser mais um processo de construção intelectualmente coerente para explicar certos fenômenos. Ou, em outras palavras, a ciência se constrói em cima de alguns fundamentos filosóficos bem definidos, mesmo que não sejam muito conscientes (freqüentemente não são mesmo). Parafraseando Lewis Carroll, faremos agora uma viagem “através do relógio”, de volta aos problemas que estão por trás da cortina conceitual do mecanicismo. Não abandonaremos os conhecimentos alcançados, mas os utilizaremos como base para a elaboração de uma nova conceitualização.
Porém, essa conceitualização não é tão nova assim, como já dissemos o estudo dos padrões e processos ficou relegado ao segundo plano a partir da introdução do modelo de Galileu de ciência; no entanto, com Aristóteles a forma não tinha existência separada, mas era imanente à matéria. Nem poderia a matéria existir separadamente da forma. A matéria, de acordo com Aristóteles, contém a natureza essencial de todas as coisas, mas apenas como potencialidade. Por meio da forma, essa essência torna-se real, ou efetiva. O processo de auto-realização da essência nos fenômenos efetivos é chamado por Aristóteles de enteléquia ("autocompletude"). É um processo de desenvolvimento, um impulso em direção à auto-realização plena. Matéria e forma são os dois lados desse processo, apenas separáveis por meio da abstração[iii]. O pensamento Aristotélico domina a cena teoria na antiguidade e na idade medieval até o advento dos fundadores do mecanicismo Copérnico, Galileu, Descartes, Bacon e Newton. Porém, nesse mesmo período surge o pensamento de Kant que na Critica da faculdade do Juízo afirma que num organismo, as partes também existem por meio de cada outra, no sentido de produzirem uma outra. "Devemos pensar em cada parte como um órgão", escreveu Kant, "que produz as outras partes (de modo que cada uma, reciprocamente, produz a outra)[...] Devido a isso, [o organismo] será tanto um ser organizado como auto-organizador."[iv] Com esta afirmação, Kant tornou-se não apenas o primeiro a utilizar o termo "auto-organização" para definir a natureza dos organismos vivos, como também o utilizou de uma maneira notavelmente semelhante a algumas concepções contemporâneas.
Uma outra visão de ciência que se opõe ao mecanicismo é chamada de vitalismo que, apesar de em muitos pontos concordar com a recente visão organísmica/holista, propõe uma outra maneira de explicar os fenômenos da vida deixados inexplicados pelo modelo mecanicista. Os vitalistas afirmam que alguma entidade, força ou campo não-físico deve ser acrescentada às leis da física e da química para se entender a vida, estabelecendo uma organização vinda de fora.


[i] Prigogine & Stengers, 1984: 64
[ii] Brenner, apud Capra, 1999: 115
[iii] Aristóteles, 2005: IX, 8, 1050  a 23
[iv] Kant, 1995: 253

ARISTÓTELES. Metafísica. 2ª ed. Tradução: Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola 2005.

CAPRA, Fritjof. O ponto de Mutação. 22ª ed. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1999.
KANT, Imannuel. Critica da Faculdade do Juízo. 2ª ed. Tradução: Valério Rohden e Antonio Marques. Rio de Janeiro: Forense universitária: 1995.

PRIGOGINE, Ilya & ISABELLE Stengers. A Nova Aliança, A Metamorfose da Ciência. Tradução: Miguel Faria e Maria Joquia Machado Trincheira. Brasília: Editora universidade de Brasília, 1984.