segunda-feira, 11 de outubro de 2010

“O QUE É VIDA?”: UM RETORNO AO ESTUDO DO SER VIVO - A natureza da Vida - parte 3

O estudo dos seres vivos tem sido negligenciado em detrimento do estudo das forças físicas devido ao triunfo do pensamento newtoniano/cartesiano que conseguiu, com seu método rígido e quantitativo, uma descrição bastante precisa dos fenômenos do universo macroscópico; porém, essa descrição não foi satisfatória, porque, ao escopo da teoria mecanicista escapa o que, segundo Prigogine:
[...] foi, sem dúvida, uma das mais antigas fontes de inspiração da física, o espetáculo do desenvolvimento progressivo, da diferenciação e da organização aparentemente espontâneas do embrião. Forma-se a carne, o bico, os olhos, os intestinos; sim, há de fato organização progressiva de um espaço propriamente biológico, aparecimento a partir de um meio homogéneo, de uma massa que parece insensível, de formas diferenciadas, precisamente no momento e no lugar oportunos, num processo coordenado e harmonioso. [i]
Os estudiosos das substâncias medem e pesam os organismos sem se atentar para o fato de que, ao reduzirem os organismos a moléculas e átomos, ou seja “quantidades”, estão ignorando as relações entre as diversas partes do organismo e as relações entre os organismos, estão deixando de fora dos seus microscópios e espectrógrafos as “qualidades” desses organismos, que são exatamente o que diferem um amontoado de moléculas e átomos inanimados de um organismo vivo.
A partir de agora, para que possamos entender a essência dos sistemas vivos, seja a partir da biofísica, da bioquímica ou outra ciência interessada no estudo dos fenômenos relacionados a vida, teremos que abandonar a crença reducionista de que quando descrevemos organismos complexos como se fossem máquinas, ou seja, em função das propriedades e do comportamento de seus elementos constituintes, estamos dando uma explicação exaustiva desses organismos.
Essa abordagem, biológico, genético e molecular, teve sua importância ao nos oferecer uma lista completa dos elementos físicos envolvidos nos sistemas vivos. Agora que a listagem está completa devemos voltar nossos esforços para os problemas deixados para traz sem solução, como por exemplo, os da diferenciação e desenvolvimento celular, ou os da regeneração. Sidney Brenner nos indica sutilmente o caminho através da concepção sistêmica da vida:
Penso que nos próximos 25 anos vamos ter de ensinar aos biólogos uma outra linguagem. (...) ainda não sei como ela se chama; ninguém sabe. Mas o que se almeja, penso eu, é resolver o problema fundamental da teoria de sistemas elaborados. (...) e ai nos deparamos com um grave problema de níveis: talvez seja um erro acreditar que toda a lógica está no nível molecular. Talvez seja preciso ir além dos mecanismos de relógio.[ii]
Cada uma das fases do pensamento científico foi bem sucedida em determinados períodos de tempo. Dando novas perspectivas para a compreensão da realidade física, condicionavam a atitude científica e estabeleciam quais seriam os critérios de pesquisa, freqüentemente ligados à maneira como se esperava que o mundo devesse funcionar de acordo com o modelo (paradigma) adotado. Deste modo, fica claro que a ciência não é um processo de descoberta, em sentido estrito, de uma realidade dada, porém parece ser mais um processo de construção intelectualmente coerente para explicar certos fenômenos. Ou, em outras palavras, a ciência se constrói em cima de alguns fundamentos filosóficos bem definidos, mesmo que não sejam muito conscientes (freqüentemente não são mesmo). Parafraseando Lewis Carroll, faremos agora uma viagem “através do relógio”, de volta aos problemas que estão por trás da cortina conceitual do mecanicismo. Não abandonaremos os conhecimentos alcançados, mas os utilizaremos como base para a elaboração de uma nova conceitualização.
Porém, essa conceitualização não é tão nova assim, como já dissemos o estudo dos padrões e processos ficou relegado ao segundo plano a partir da introdução do modelo de Galileu de ciência; no entanto, com Aristóteles a forma não tinha existência separada, mas era imanente à matéria. Nem poderia a matéria existir separadamente da forma. A matéria, de acordo com Aristóteles, contém a natureza essencial de todas as coisas, mas apenas como potencialidade. Por meio da forma, essa essência torna-se real, ou efetiva. O processo de auto-realização da essência nos fenômenos efetivos é chamado por Aristóteles de enteléquia ("autocompletude"). É um processo de desenvolvimento, um impulso em direção à auto-realização plena. Matéria e forma são os dois lados desse processo, apenas separáveis por meio da abstração[iii]. O pensamento Aristotélico domina a cena teoria na antiguidade e na idade medieval até o advento dos fundadores do mecanicismo Copérnico, Galileu, Descartes, Bacon e Newton. Porém, nesse mesmo período surge o pensamento de Kant que na Critica da faculdade do Juízo afirma que num organismo, as partes também existem por meio de cada outra, no sentido de produzirem uma outra. "Devemos pensar em cada parte como um órgão", escreveu Kant, "que produz as outras partes (de modo que cada uma, reciprocamente, produz a outra)[...] Devido a isso, [o organismo] será tanto um ser organizado como auto-organizador."[iv] Com esta afirmação, Kant tornou-se não apenas o primeiro a utilizar o termo "auto-organização" para definir a natureza dos organismos vivos, como também o utilizou de uma maneira notavelmente semelhante a algumas concepções contemporâneas.
Uma outra visão de ciência que se opõe ao mecanicismo é chamada de vitalismo que, apesar de em muitos pontos concordar com a recente visão organísmica/holista, propõe uma outra maneira de explicar os fenômenos da vida deixados inexplicados pelo modelo mecanicista. Os vitalistas afirmam que alguma entidade, força ou campo não-físico deve ser acrescentada às leis da física e da química para se entender a vida, estabelecendo uma organização vinda de fora.


[i] Prigogine & Stengers, 1984: 64
[ii] Brenner, apud Capra, 1999: 115
[iii] Aristóteles, 2005: IX, 8, 1050  a 23
[iv] Kant, 1995: 253

ARISTÓTELES. Metafísica. 2ª ed. Tradução: Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola 2005.

CAPRA, Fritjof. O ponto de Mutação. 22ª ed. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1999.
KANT, Imannuel. Critica da Faculdade do Juízo. 2ª ed. Tradução: Valério Rohden e Antonio Marques. Rio de Janeiro: Forense universitária: 1995.

PRIGOGINE, Ilya & ISABELLE Stengers. A Nova Aliança, A Metamorfose da Ciência. Tradução: Miguel Faria e Maria Joquia Machado Trincheira. Brasília: Editora universidade de Brasília, 1984.



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