segunda-feira, 16 de agosto de 2010

“O QUE É VIDA?”: UM RETORNO AO ESTUDO DO SER VIVO - A natureza da Vida parte 1


Desde a Grécia o estudo da filosofia tem se mantido vacilante entre o estudo da substância e o da forma, da estrutura e do padrão. Entre dois tipos de perguntas inquietantes. Para tentar estabelecer a estrutura constituinte do objeto estudado, seja ele qual for: “Do que ele é feito?”, “Qual é a sua substância?”, “Qual é o seu ser?” (matéria, estrutura, quantidade). Com o objetivo de encontrar um “modo” como os fenômenos ocorrem: “Qual é o padrão?”, “Qual a relação entre ...?”, “Que tipo de organização perpassa esses objetos?” (padrão, ordem, qualidade). O estudo dos processos, por sua vez, estava inserido e confundido com o dos padrões. Desde então o estudo das essências tem suplantado o estudo do padrão, que apesar de relegado ao segundo plano, não perdeu sua importância. Agora, porém as coisas começam a se inverter e então, padrão e processo começam a ser percebidos como conceitos fundamentais para a compreensão de diversos fenômenos, principalmente os relacionados com a vida.
A lógica de funcionamento da ciência clássica nasceu no mundo grego antigo, o objetivo da qual era a busca da simplificação dos fenômenos e a descrição completa da natureza por meio de leis simples. Essa lógica diz respeito aos conceitos, proposições, inferências, julgamentos e raciocínios simplificadores, fundamentos que foram propostos no Organon[1], de Aristóteles.[i]
A ciência clássica se fundamenta em quatro princípios: o princípio da ordem, o princípio da separabilidade, o princípio da redução e o princípio da lógica indutivo-dedutivo-identitária, os quais funcionam num ambiente de certeza e busca pela simplificação da complexidade existente nos fenômenos[ii].
O princípio da ordem postula que o universo é regido por leis imutáveis, visão do qual, nasce a concepção determinista e mecânica do mundo. Assim, toda desordem considera-se como carência de conhecimento, para torná-la ordem. O princípio da separabilidade segue a lógica de que, para resolver um problema, é preciso decompô-lo em elementos simples. O princípio da redução se alicerça na idéia de que o conhecimento dos elementos de base do mundo físico e biológico é indispensável, enquanto o conhecimento do conjunto de processos, mudanças e diversidade é secundário. Esse princípio tende a reduzir o conhecível àquilo que é mensurável, quantificável, formalizável, seguindo os preceitos de Galileu, que só considerava os fenômenos que podiam ser descritos por meio de quantidades mensuráveis[iii]. O princípio da lógica indutivo-dedutivo-identitária está associado à razão. A indução, a dedução e os três axiomas de Aristóteles (identidade, contradição, exclusão) asseguram a validade formal das teorias e raciocínios.
Edgar Morin[iv] destaca que os quatro princípios são interdependentes e reforçam-se mutuamente. Disjunção e redução eliminam o que não é redutível à ordem, às leis gerais, às unidades elementares. Esses princípios ocultam a constante presença da desordem no mundo e o problema da organização. A conjunção dos quatro princípios, portanto, determina o pensamento simplificador, submisso à hegemonia da disjunção, da redução e do cálculo.
O nascimento da ciência moderna é atribuído a uma grande variedade de circunstâncias, eventos e pessoas, mas é inquestionável a importância de René Descartes, filósofo francês, quem primeiro articulou os fundamentos do moderno método científico de pesquisa. Pode-se dizer que a maior contribuição da abordagem de Descartes foi a idéia de que os sistemas complexos podem ser compreendidos pela análise de uma de suas partes, no tempo, e, a partir da compreensão dessa parte, atribuir suas conclusões ao sistema como um todo, compreendendo-se o contexto. Com esse objetivo, Descartes, em 1619, formulou quatro preceitos básicos que fundamentam um método universal para conduzir a razão[v].
O primeiro é o da evidência: postula que nunca se deve aceitar nada como verdadeiro, se não é possível provar. Em outras palavras, tem-se de evitar cuidadosamente a precipitação e a previsão. O segundo é o da redução: pressupõe a divisão das dificuldades encontradas para a resolução de um problema na máxima quantidade de partes que facilite essa resolução. O terceiro é o da causalidade: estabelece uma ordem hierárquica para facilitar o conhecimento dos objetos. Inicia-se pelos elementos mais simples e mais fáceis de identificar, evoluindo-se para objetos complexos e mais difíceis. O quarto é o da exaustividade: retoma os três primeiros preceitos, perfazendo enumerações tão completas e revisões tão gerais do objeto estudado que se supõe ter o total conhecimento desse objeto.
Os quatro preceitos, instituídos por Descartes, marcam a passagem da ciência clássica para a ciência moderna: a primeira norteada pela filosofia aristotélica; a segunda guiada pelo pensamento cartesiano. Enquanto a Ciência Clássica associava a Ciência à Filosofia, a Ciência Moderna, estabelecida por Descartes, dissocia a Ciência da Filosofia[vi]. Assim, apesar de continuar com o objetivo da redução herdada da lógica da ciência clássica, a mudança, estabelecida por Descartes na ciência moderna, conduziu à elaboração de um conhecimento científico com especificações metodológicas, com princípios e regras que fazem desse conhecimento objetivo e universal.
O Quadro a baixo apresenta um resumo dos princípios da ciência clássica e dos preceitos da ciência moderna.
Quadro 01. Ciência Clássica e Ciência Moderna

 
Ciência Clássica
Ciência Moderna
Lógica de fundamento: Simplificação
Lógica de fundamento: Simplificação
Base de lógica: Filosofia Aristotélica
Ciência associada à Filosofia
Base de lógica: Pensamento Cartesiano
Ciência dissociada da Filosofia
Princípios Básicos
Preceitos básicos
1. Princípio da ordem
1. Preceito da evidência
2. Princípio da separabilidade
2. Preceito da redução
3. Princípio da redução
3. Preceito da causalidade
4. Princípio incutivo-dedutivo-identitário
4. Preceito da exaustividade
Observando-se o Quadro, nota-se que as lógicas de funcionamento das ciências clássica e moderna são as mesmas, mas com fundamentações diferentes. Enquanto a ciência clássica se embasa na filosofia aristotélica, a ciência moderna se fundamenta no pensamento cartesiano. No caso da ciência clássica, Filosofia e Ciência são associadas para determinar os princípios norteadores. Já a ciência moderna desconsidera as interferências da Filosofia na construção da Ciência.


[1] Organon é a denominação dada por Aristóteles à lógica que, para ele, significava um instrumento de conhecimento e não o juiz do conhecimento.


[i] PRIGOGINE, Ilya & ISABELLE Stengers. A Nova Aliança, A Metamorfose da Ciência. Tradução: Miguel Faria e Maria Joquia Machado Trincheira. Brasília: Editora universidade de Brasília, 1984.
[ii]MORIN, Edgar. LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Tradução: Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis,2000.
[iii] GLEICK, James. Caos: a criação de uma nova ciência. 11ª ed. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Camus, 1989.
[iv]
MORIN, Edgar. O método 1: da natureza da natureza; Tradução: Ilana Heineberg. 2ª edição. Porto Alegre: v. 1, sulina, 1977.
[v] DESCARTES, Rene. Discurso sobre o método. In: Descartes. São Paulo: ed. Abril, 1980 (Os pensadores)
[vi]MORIN, Edgar. O método 2: a vida da vida; Tradução: Marina Lobo. Porto Alegre: v.2 sulina, 1980.

Nenhum comentário:

Postar um comentário