Desde a Grécia o estudo da filosofia tem se mantido vacilante entre o estudo da substância e o da forma, da estrutura e do padrão. Entre dois tipos de perguntas inquietantes. Para tentar estabelecer a estrutura constituinte do objeto estudado, seja ele qual for: “Do que ele é feito?”, “Qual é a sua substância?”, “Qual é o seu ser?” (matéria, estrutura, quantidade). Com o objetivo de encontrar um “modo” como os fenômenos ocorrem: “Qual é o padrão?”, “Qual a relação entre ...?”, “Que tipo de organização perpassa esses objetos?” (padrão, ordem, qualidade). O estudo dos processos, por sua vez, estava inserido e confundido com o dos padrões. Desde então o estudo das essências tem suplantado o estudo do padrão, que apesar de relegado ao segundo plano, não perdeu sua importância. Agora, porém as coisas começam a se inverter e então, padrão e processo começam a ser percebidos como conceitos fundamentais para a compreensão de diversos fenômenos, principalmente os relacionados com a vida.
A lógica de funcionamento da ciência clássica nasceu no mundo grego antigo, o objetivo da qual era a busca da simplificação dos fenômenos e a descrição completa da natureza por meio de leis simples. Essa lógica diz respeito aos conceitos, proposições, inferências, julgamentos e raciocínios simplificadores, fundamentos que foram propostos no Organon[1], de Aristóteles.[i]
A ciência clássica se fundamenta em quatro princípios: o princípio da ordem, o princípio da separabilidade, o princípio da redução e o princípio da lógica indutivo-dedutivo-identitária, os quais funcionam num ambiente de certeza e busca pela simplificação da complexidade existente nos fenômenos[ii].
O princípio da ordem postula que o universo é regido por leis imutáveis, visão do qual, nasce a concepção determinista e mecânica do mundo. Assim, toda desordem considera-se como carência de conhecimento, para torná-la ordem. O princípio da separabilidade segue a lógica de que, para resolver um problema, é preciso decompô-lo em elementos simples. O princípio da redução se alicerça na idéia de que o conhecimento dos elementos de base do mundo físico e biológico é indispensável, enquanto o conhecimento do conjunto de processos, mudanças e diversidade é secundário. Esse princípio tende a reduzir o conhecível àquilo que é mensurável, quantificável, formalizável, seguindo os preceitos de Galileu, que só considerava os fenômenos que podiam ser descritos por meio de quantidades mensuráveis[iii]. O princípio da lógica indutivo-dedutivo-identitária está associado à razão. A indução, a dedução e os três axiomas de Aristóteles (identidade, contradição, exclusão) asseguram a validade formal das teorias e raciocínios.
Edgar Morin[iv] destaca que os quatro princípios são interdependentes e reforçam-se mutuamente. Disjunção e redução eliminam o que não é redutível à ordem, às leis gerais, às unidades elementares. Esses princípios ocultam a constante presença da desordem no mundo e o problema da organização. A conjunção dos quatro princípios, portanto, determina o pensamento simplificador, submisso à hegemonia da disjunção, da redução e do cálculo.
O nascimento da ciência moderna é atribuído a uma grande variedade de circunstâncias, eventos e pessoas, mas é inquestionável a importância de René Descartes, filósofo francês, quem primeiro articulou os fundamentos do moderno método científico de pesquisa. Pode-se dizer que a maior contribuição da abordagem de Descartes foi a idéia de que os sistemas complexos podem ser compreendidos pela análise de uma de suas partes, no tempo, e, a partir da compreensão dessa parte, atribuir suas conclusões ao sistema como um todo, compreendendo-se o contexto. Com esse objetivo, Descartes, em 1619, formulou quatro preceitos básicos que fundamentam um método universal para conduzir a razão[v].
O primeiro é o da evidência: postula que nunca se deve aceitar nada como verdadeiro, se não é possível provar. Em outras palavras, tem-se de evitar cuidadosamente a precipitação e a previsão. O segundo é o da redução: pressupõe a divisão das dificuldades encontradas para a resolução de um problema na máxima quantidade de partes que facilite essa resolução. O terceiro é o da causalidade: estabelece uma ordem hierárquica para facilitar o conhecimento dos objetos. Inicia-se pelos elementos mais simples e mais fáceis de identificar, evoluindo-se para objetos complexos e mais difíceis. O quarto é o da exaustividade: retoma os três primeiros preceitos, perfazendo enumerações tão completas e revisões tão gerais do objeto estudado que se supõe ter o total conhecimento desse objeto.
Os quatro preceitos, instituídos por Descartes, marcam a passagem da ciência clássica para a ciência moderna: a primeira norteada pela filosofia aristotélica; a segunda guiada pelo pensamento cartesiano. Enquanto a Ciência Clássica associava a Ciência à Filosofia, a Ciência Moderna, estabelecida por Descartes, dissocia a Ciência da Filosofia[vi]. Assim, apesar de continuar com o objetivo da redução herdada da lógica da ciência clássica, a mudança, estabelecida por Descartes na ciência moderna, conduziu à elaboração de um conhecimento científico com especificações metodológicas, com princípios e regras que fazem desse conhecimento objetivo e universal.
O Quadro a baixo apresenta um resumo dos princípios da ciência clássica e dos preceitos da ciência moderna.
Quadro 01. Ciência Clássica e Ciência Moderna
Ciência Clássica | Ciência Moderna |
Lógica de fundamento: Simplificação | Lógica de fundamento: Simplificação |
Base de lógica: Filosofia Aristotélica Ciência associada à Filosofia | Base de lógica: Pensamento Cartesiano Ciência dissociada da Filosofia |
Princípios Básicos | Preceitos básicos |
1. Princípio da ordem | 1. Preceito da evidência |
2. Princípio da separabilidade | 2. Preceito da redução |
3. Princípio da redução | 3. Preceito da causalidade |
4. Princípio incutivo-dedutivo-identitário | 4. Preceito da exaustividade |
Observando-se o Quadro, nota-se que as lógicas de funcionamento das ciências clássica e moderna são as mesmas, mas com fundamentações diferentes. Enquanto a ciência clássica se embasa na filosofia aristotélica, a ciência moderna se fundamenta no pensamento cartesiano. No caso da ciência clássica, Filosofia e Ciência são associadas para determinar os princípios norteadores. Já a ciência moderna desconsidera as interferências da Filosofia na construção da Ciência.
[1] Organon é a denominação dada por Aristóteles à lógica que, para ele, significava um instrumento de conhecimento e não o juiz do conhecimento.
[i] PRIGOGINE, Ilya & ISABELLE Stengers. A Nova Aliança, A Metamorfose da Ciência. Tradução: Miguel Faria e Maria Joquia Machado Trincheira. Brasília: Editora universidade de Brasília, 1984.
[ii]MORIN, Edgar. LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Tradução: Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis,2000.
[iii] GLEICK, James. Caos: a criação de uma nova ciência. 11ª ed. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Camus, 1989.
MORIN, Edgar. O método 1: da natureza da natureza; Tradução: Ilana Heineberg. 2ª edição. Porto Alegre: v. 1, sulina, 1977.
[v] DESCARTES, Rene. Discurso sobre o método. In: Descartes. São Paulo: ed. Abril, 1980 (Os pensadores)
[vi]MORIN, Edgar. O método 2: a vida da vida; Tradução: Marina Lobo. Porto Alegre: v.2 sulina, 1980.
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