quinta-feira, 16 de setembro de 2010

“O QUE É VIDA?”: UM RETORNO AO ESTUDO DO SER VIVO - A natureza da Vida parte 2

O paradigma reducionista é ramificado em dois outros principais paradigmas: o mecânico racional e o mecânico estatístico: O paradigma mecânico racional tem o propósito de explicar e descrever o objeto investigado. Para elucidá-lo analisa-se a estrutura a qual determina as funções desse objeto. A estrutura é considerada a causa, a condição necessária e suficiente do efeito e da função do objeto. Esse paradigma teve seu apogeu no século XIX e explicava a racionalidade do homem a partir de causas mecânicas. O paradigma mecânico estatístico ou paradigma evolucionista marca a passagem de análises micros (realizadas por biólogos e sociólogos) para análises macros realizadas por físicos, matemáticos e engenheiros. A teoria da evolução das espécies e o desenvolvimento da Termodinâmica incorporam a visão dos movimentos dinâmicos e das transformações irreversíveis da estrutura no tempo, em contraponto à visão reversível do paradigma da mecânica racional. A incorporação do conceito de sistema fechado leva ao objeto fundamental deste paradigma: estudar a estrutura associada à evolução e à seqüência de transformações internas do objeto.
Observa-se que o paradigma reducionista proporcionou muitos progressos para a ciência, mas, apesar do sucesso desse método, cientistas de várias áreas perceberam que os sistemas com muitas interações e propriedades emergentes careciam de um método mais sistêmico para guiá-los. Nessa situação, Fritjof Capra[i] argumenta que alguns pesquisadores começaram a observar que as soluções oferecidas pelas equações de Newton restringia-se a fenômenos simples e regulares, enquanto a complexidade de várias áreas pareciam esquivar-se a qualquer investigação mecanicista. Um exemplo bastante ilustrativo são os fenômenos relacionados com a vida
Na concepção mecanicista clássica, um organismo é reduzido a seus menores componentes, como faríamos ao estudar uma máquina, como, por exemplo, uma bicicleta, na qual uma vez compreendidas suas peças podemos deduzir seu funcionamento exaustivamente. “Em biologia, a concepção cartesiana dos organismos vivos como se fossem máquinas, constituídas de partes separadas, ainda é a base da estrutura conceitual dominante.”[ii] A dissecação é o método predileto dos biólogos mecanicistas para o estudo dos organismos vivos, ou seja, eles se sentem mais a vontade quando o seu objeto de estudo já não vive mais. Por traz dessa pratica está um conceito importante. O de que estudando suas partes constituintes podemos compreender exaustivamente o organismo vivo.
Um exemplo bastante ilustrativo dessa concepção é a vigorosa elaboração desse conceito feita pelo famoso humanista e existencialista Soren Kierkegaard:
O quadro científico do mundo real à minha volta é muito deficiente. Ele nos dá muitas informações factuais, coloca toda a nossa experiência numa ordem magnificamente consistente, mas mantém um silêncio horrível sobre tudo aquilo que está realmente próximo de nossas corações, de tudo aquilo que é realmente valioso e caro em nossas vidas, aquilo que realmente nos interessa. Este quadro não nos pode dizer nada sobre o valor do vermelho ou do azul, do amargo e do doce, dor física e prazer físico; nada sobre o belo e o feio, o bom e o mau. É incompetente para dizer qualquer coisa válida sobre Deus e a eternidade... Assim, em suma, não pertencemos realmente a este mundo descrito pelo quadro científico. Não estamos realmente nele. Estamos fora dele. Somos como espectadores de uma peça que insiste em demonstrar que o mundo é uma máquina cega, onde aparecemos fortuitamente para, logo, desaparecer. Apenas nossos corpos parecem se enquadrar no quadro, sujeitos às leis que regem o quadro, explicados linearmente pelo quadro... Eu não pareço ser necessário como ser humano, ou como autor... As grandes mudanças que ocorrem neste mundo material, das quais eu me sinto parcialmente responsável, cuidam de si mesmas, segundo o quadro - elas são amplamente explicadas pela interação mecânica direta (...) Isso torna o mundo operacional para o entendimento pragmático. Permite que você imagine a manifestação total do universo como a de um relógio mecânico que, pelo o que sabe e crê a ciência, poderia continuar a funcionar do mesmo jeito sem que nunca tivesse havido consciência, vontade, esforço, dor, prazer e responsabilidade...[iii]
E essa visão persiste através do século XX com o jovem biólogo Joseph Needham[1]: “O mecanicismo e o materialismo estão na base do pensamento cientifico.”[iv] Sobre a mente, um dos fenômenos da vida mais intrigantes e que teremos oportunidade de tratar mais adiante neste trabalho, ele diz: “não aceito, em absoluto, a opinião de que os fenômenos da mente não são passiveis de descrição físico-química. Tudo o que for cientificamente dado a conhecer sobre eles será mecanicista[...]”[v] Em resumo de sua posição ele coloca o homem da seguinte forma: “Em ciência, o homem é uma máquina; ou, se não é, então não é absolutamente nada.”[vi]
O apogeu do mecanicismo no século XX foi a consolidação da genética como sendo a base de toda a vida e tem como data significativa o seqüênciamento do código genético do ser humano em 2003 . “Os fenômenos biológicos que não podem ser explicados em termos reducionistas são considerados indignos de investigação.”[vii] Assim esses fenômenos são completamente ignorados. Embora essa concepção tenha sido dominante durante boa parte da história da ciência moderna, ela encerra em si profundas limitações. Quanto a isso o eminente biólogo Paul Weiss observou:
Podemos afirmar definitivamente... com base em investigações estritamente empíricas, que a pura e simples inversão de nossa anterior dissecação analítica do universo, procedendo-se à reunião de todas as suas peças, seja na realidade ou apenas em nossa mente, não pode levar a uma explicação completa do comportamento sequer do mais elementar sistema vivo.[viii]
A partir do momento em que os cientistas dissecam, reduzem, um organismo como um todo a seus componentes constituintes mínimos, sejam as células, os genes ou as partículas fundamentais. Ao tentar, desse modo, explicar todos os fenômenos em função desses elementos, eles deixam de perceber o sistema vivo de forma integral e passam a ter uma visão fragmentada desse organismo, eles não podem mais perceber as atividades coordenadoras do sistema como um todo. “Os problemas que os biólogos não podem resolver hoje, ao que parece em virtude de sua abordagem estreita e fragmentada, estão todos relacionados com a função dos sistemas vivos como totalidade e com suas interações com o meio ambiente.”[ix]
Um exemplo bastante elucidativo ocorreu por volta de 1970, quando o DNA e os mecanismos de hereditariedade dos organismos unicelulares ― por exemplo, as bactérias ― estavam desvendados, porém ainda faltavam os dos organismos multicelulares. Isso colocou os cientistas diante de problemas que ainda não haviam sido encarados como o desenvolvimento e a diferenciação celular, Capra nos coloca mais claramente esse problema:
Nos estágios iniciais do desenvolvimento de organismos superiores, o numero de suas células passa de uma para duas, para quatro, oito, dezesseis, e assim por diante. Dado que se pensa ser a informação genética idêntica em cada célula, como pode acontecer que as células se especializem de maneiras diferentes, tornando-se células musculares, sanguíneas, ósseas, nervosas, etc?[x]
Está claro, depois dessa explicação, que o critério para diferenciação não se encontra somente na célula individual, demonstrando assim a incapacidade da visão mecanicista reducionista de lidar com esse fenômeno básico que encontra variações em toda biologia.


[1] Needham mais tarde veio a se tornar um dos mais eminentes defensores da visão organicista.


[i] Capra, 2002
[ii] Capra, 1999: 96
[iii] Kierkegaard, apud Guimarães, 1996, p. 21, 22
[iv] Needham, apud Capra, 1999: 101
[v] Needham, apud Capra, 1999: 101
[vi] Needham, apud Capra, 1999: 101
[vii] Capra, 1999: 96
[viii] Weiss, apud Capra, 1999: 96
[ix] Capra, 1999: 97
[x] Capra, 1999: 113

5 comentários:

  1. Eu li e gostei. Ficou realmente bem escrito. Me fez pensar se o paradigma atual realmente deixou de considerar os seres vivos como máquinas, ou apenas atualizou a visão para aquilo que as atuais máquinas podem fazer, isso é, serem extremamente complexas, trabalharem com "dados", etc...

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  2. Ou as maquinas de hoje se tornaram parecidas conosco? Mas a questão não é se os seres vivos se parecem com maquinas, e sim o quão bem eles podem ser analizados e quantos fenomenos podem ser explicados com cada paradigma.

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  3. É uma via dupla: aproximamos a forma como estudamos a vida com a forma como estudamos a máquina. Modelamos a máquina naquilo que vemos na natureza, e depois olhamos a natureza com um olhar condicionado pela forma com que construímos as máquinas. As máquinas não se parecem com seres vivos, nós construímos as máquinas a partir de um modelo de vida. Acho que aumentar a quantidade de fenômenos que podemos explicar não é grande vantagem. Existe um número potencialmente infinito de fenômenos que podem ser observados no mais simples ser vivo, mas não importa o quanto aumente nosso poder explicativo sobre seu funcionamento, isso não nos aproxima nem um passo de compreender o que é realmente importante sobre a vida, isto é, o seu significado.

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  4. A sua via de mão dupla parece uma via de mão unica, com alguem na contramão. Via de mão dupla pra ficar claro exite de fato, ou seja quanto mais nós aprendemos sobre a vida nós percebemos que podemos contruir maquinas melhores, o que por hora melhor quer dizer mais parecidoas com seres vivos, e essa maquinas melhores vão nos ajudar a compreender melhor o mundo.
    Você tem razão quando diz que esse processo não nos deixa um unico passo mais proximo do significado, não so da vida mas de qualquer outra coisa. Esse não é nem nunca foi o objetivo da ciência. Isso porque como diz meu bom amigo Wittgenstein as coisas não tem significado. O significado deve ser atribuido as coisas, podemos discutir se essa atribuição pode caber a filosofia, mas eu particularmente acredito que dever ser uma coisa individual ('sujetiva').
    O que não pode acontecer é essa significação ser baseada numa conceçpão equivocada a respeito da natureza do mundo.

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